segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

AMIGO SECRETO EM CASA

(publicado em 20/12/2006)

Em casa, 2006 foi um dos anos mais gostosos de nossas vidas: comemos, bebemos e respiramos arte. Foi um verdadeiro desfile de atores, atrizes, bailarinos, bailarinas, diretores e diretoras de teatro, músicos e músicas, cenógrafos, iluminadores, enfim, muita gente boa.

Talvez por isso, o “amigo secreto” da casa foi todo apoiado em arte. Decidimos, Lisa, as cadelas Samba e Salsa, o casal de sacis Maracatu e Lambada, e eu, que faríamos o “amigo secreto”, mas os presentes seriam performances artísticas: cada um deveria estudar a personalidade do sorteado e produzir uma performance baseada nisso.

No final de outubro, fizemos o sorteio. Aliás, vários sorteios, porque, como somos apenas seis, muitas vezes alguém tirava ele mesmo. Por fim, deu certo. A partir dali, passamos à fase dos ensaios, o que foi um sufoco, já que tínhamos que esconder o que estávamos produzindo pra que ninguém descobrisse o amigo do outro.

A Samba foi quem organizou a parte dos contatos através de bilhetes. Mas, como é curiosa aquela cadela! Ela tentou o tempo todo saber quem havia tirado quem. Não conseguiu, mas foi uma correria danada pra despistá-la.

A Salsa, sempre muito séria, cansou de dar dura na Samba. “É por você ser assim, que o carteiro tem chegado em silêncio na nossa rua. Você vive querendo abrir as correspondências dos vizinhos!”, dizia a Salsa.

Maracatu e Lambada, prepararam suas performances fora de casa, provavelmente de madrugada.

Eu ensaiei com fone de ouvido durante as tardes, enquanto as cadelas dormiam e a Lisa ficava na Estação Ferroviária ensaiando teatro. A Lisa preparou seu número lá na Estação mesmo.

Na revelação, que ocorreu antes do Natal, decidimos que a pessoa apresentaria sua performance e todos tentariam adivinhar quem ela havia tirado.

Preparamos a mesa na varanda com muita fruta para os sacis; ração comum e diet, porque a Salsa passou um pouco do peso; salgados e bebidas.

Samba não se cabia em sua excitação e continuava dando as ordens para preparar as revelações.

Chegado o momento, Samba disse que não queria ser a primeira e pediu que a Lisa iniciasse.

A Lisa subiu no palco improvisado e fez um número de dança contemporânea, com trilha de Zé Gomes e contando uma história de uma menina que vivia num orfanato e que acabou encontrando uma família. Nos primeiros passos, Samba já estava chorando, afinal, aquela era sua história, mas a Lisa havia tirado a Salsa e esta ficou muito orgulhosa.

Salsa foi ao palco e reproduziu um trecho do filme “Policarpo Quaresma”. Ficou na cara que ela havia me tirado.

De onde eu estava, disse uma poesia de Vinícius de Moraes, que fala de nossa brasilidade. Ficou a dúvida se eu havia tirado Maracatu ou Lambada, mas Salsa lembrou-se da obsessão de Vinícius pelas mulheres e descobriu que era a Lambada.

Lambada fez um número de ballet clássico, em cima de uma trilha que, em meio a Vivaldi, surgiam textos muito românticos ditos por ela. Todos acertaram que ela havia tirado o Maracatu.

Maracatu surpreendeu a todos, mesmo restando apenas a Lisa e a Samba. Ele foi à lavanderia e voltou com uma imensa peruca negra na cabeça e um vestido longo azul brilhante. Colocou Tina Turner pra tocar e fez um número de dublagem, numa dança muito frenética. A performance encaixava tanto para a Lisa, quanto para a Samba, e a dúvida ficou por um tempo, até que ele foi obrigado a revelar que havia tirado a Samba.

Samba, já subiu ao palco chorando e falou de sua felicidade em ter tirado a Lisa, mas queria fazer uma homenagem para nós dois, Lisa e eu, em sua performance. Ajeitou o pedestal e o microfone, sentou num banquinho, cruzou as pernas, soltou o play back e cantou, afinadíssima, a música “Lisa”, que compus em parceria com Lula Barbosa.

Ao final, nos abraçamos e brindamos pela continuidade desse clima de arte, por muitos e muitos anos, em nossa casa.

João Bid

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A MODA FAZENDO A CABEÇA DA SAMBA

(publicado em 27/11/06)

A Samba não tira da cabeça que quer ser modelo. “A partir de hoje só vou comer ração diet e ficar magérrima pra arrasar nas passarelas.”, fica falando a cadela o dia inteiro.

Percebo que a Salsa também gostaria, mas ela sabe que está com o peso muito acima e que seria muito difícil entrar num regime. Ela adora comer o dia todo, mas já afinou o discurso pra não deixar de dar sua cutucada na Samba. “Não quero saber dessas bobagens. Isso não vai acrescentar nada ao meu intelecto.”, resmunga a Salsa.

Para o casal de sacis, moda é uma coisa muito relativa. Lambada, por exemplo, diz que não trocaria o Maracatu, com seu gorro fora da moda, nem pelo Gianecchini, que mais parece um outdoor ambulante, de tanta grife que carrega no corpo. Para Maracatu, Lambada é a saci que ele sonhou ter como sua companheira, além de ser a mais bela de todas.

Cá entre nós, nunca gostei dessa coisa de moda. Penso que se a pessoa está bem, seja gorda ou magra, alta ou baixa, tudo que ela vestir cairá bem. Para mim, moda é coisa do capitalismo, por isso, não estava achando legal ver a Samba empolgada daquele jeito. Além disso, não há dúvida de que a Samba e a Salsa são as cadelas mais modernas e lindas deste planeta.

Ontem, contei pra Lisa o ocorrido e ela pediu para nos reunirmos na varanda e discutirmos o assunto.

Estávamos lá: Lisa e eu, sentados nas cadeiras; Maracatu na espreguiçadeira; Lambada na rede; e Salsa deitada aos meus pés. Perguntei pela Samba e Salsa disse que ela já viria. “Ela disse que está se arrumando para a conversa”, falou a Salsa. A Lisa olhou para a lavanderia, colocou a mão sobre a cabeça e disse: “Meu Deus, os figurinos da peça!” Dias antes, a Lisa havia deixado os figurinos da peça “A VER ESTRELAS” pendurados em cabides na lavanderia.

A Lisa tentou levantar, mas não houve tempo, porque ouvimos a música “Smile”, vinda da lavanderia. Todos olhamos e vimos somente uma das pernas de Samba, com meia cor-de-rosa. “O figurino da Colombina Rosa!”, exclamou a Lisa. Não deu outra: sai a Samba da lavanderia vestida de Colombina Rosa, com maquiagem e tudo.

O acesso da lavanderia à varanda é feito por um corredor cimentado em meio ao gramado, que, naquele momento, se transformara numa passarela por onde vinha Samba. “Que linda!” gritei, sendo repreendido imediatamente pela Lisa, que, apesar de puta com a atitude da Samba, reconheceu mais tarde que ela estava realmente linda. Salsa, que adora a irmã, ficou extática e com um brilho de orgulho nos olhos. Maracatu e Lambada sorriam.

E Samba veio, passo a passo, até a varanda.

Quando Samba parou, me recompus e iniciei a discussão, chamando a atenção dela para a bobagem que estava querendo fazer. A Lisa não conseguiu falar, porque Lambada a interrompeu dizendo: “Vocês não estão entendendo?”. Maracatu corroborou: “A Samba me surpreende todos os dias”. “Essa é a minha irmã!”, disse Salsa.

Lisa e eu nos sentimos reprimidos e nos calamos sem entender o porquê de todos estarem aprovando a atitude da Samba. “O que está ocorrendo?”, perguntei.

Samba, ainda com o fundo musical de “Smile”, interpretou: “Nada é mais moderno do que entrarmos numa bela fantasia. A preocupação com a moda é coisa de quem não sabe sonhar.”

Samba suspirou e fechou com uma frase da peça “A VER ESTRELAS”: “ O que é melhor, sonhar ou ficar a ver estrelas?”.

Maracatu e Lambada puxaram as palmas. Salsa limpava os olhos lacrimejados e, além de aplaudir, gritava “Uh! Uhuuuuuuuuuu!”.

Lisa e eu acompanhamos e aplaudimos entusiasticamente a lição daquela cadela, que, já sabíamos, não cairia facilmente nessas histórias de perfumarias e ficaria com a arte.

João Bid

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

DANÇA CONTEMPORÂNEA EM CASA

(publicado em 30/10/2006)

Hoje não precisamos, eu e Lisa, de despertador pra acordar. Estavam todos, as cadelas e o casal de sacis, no gramado, embaixo da janela do quarto, falando muito alto. Destacava-se a voz de Lambada, a saci fêmea, que dirigia uma sessão de exercícios matinais. Ficamos meio putos, porque havíamos dormido tarde, já que no dia anterior assistimos ao belo espetáculo “Trilhos”, produzido pela Lisa, com o grupo de dança contemporânea “Avus”, e, na empolgação, ficamos até mais tarde conversando sobre o evento.

O que me deixou cabreiro, é que Maracatu e Lambada sabiam disso, já que os vi na apresentação e tenho certeza que eles nos viram indo para o bar.

Abrimos a janela para brigar, mas não conseguimos, porque a cena que vimos era para ser contemplada: Maracatu, Samba e Salsa alinhados no gramado e Lambada, vestida de colant, com sapatilha no pé e faixa na cabeça, criava uma coreografia de dança contemporânea.

Assistimos por um momento e percebi que Lambada tentava passar aos outros as coreografias que havia assistido no dia anterior. Notei ainda, que Lambada já estava com os trejeitos da protagonista do espetáculo. Além disso, ela exigia que os outros não só executassem as funções dos bailarinos do espetáculo “Trilhos”, como os chamava pelos nomes destes.

Quando Lambada permitiu uns momentos de descanso, chamamos todos para uma breve conversa. Perguntamos o porquê daquilo e Lambada disse que ficou tão empolgada com o espetáculo “Trilhos”, que queria montá-lo com o pessoal da casa. Concordamos com Lambada em relação à beleza do espetáculo, mas opinamos que eles deveriam se reunir e criar um novo espetáculo.

Salsa, sempre muito sensata, lembrou que havia sugerido exatamente isso para Lambada. “Mas ela cismou que os componentes do grupo Avus são insuperáveis e devem ser somente imitados.”, contou Salsa.

Concordei que o Avus realizou um trabalho muito bom, mas argumentei que o grupo que estava se formando em casa precisava de uma identidade, mesmo que o primeiro trabalho não saísse tão bonito e competente como o “Trilhos”.

Lambada concordou e Samba foi logo pedindo para que liberássemos os CDs e os livros para que eles pesquisassem e tentassem montar algo novo. “Vamos precisar também de uma pequena estrutura de som e luz.”, pediu Samba.

Eu e Lisa liberamos tudo e fomos trabalhar.

Ao chegarmos do trabalho, da calçada dava pra ouvir a música de Antonio Nóbrega tocando nos fundos da casa. Pensei comigo: “a pesquisa foi boa”.

Ao chegarmos na lavanderia, sem que nos notassem, vimos CDs da Inezita Barroso e de outros expoentes da nossa música caipira espalhados na prateleira de materiais de limpeza e Lambada dirigia uma reunião.

Sua última fala foi a seguinte: “Com muita garra, faremos um espetáculo de dança contemporânea muito bom. Não vamos superar o Avus, mas faremos bonito”.

Soubemos depois que o título do espetáculo que eles bolaram é “A revolução das entidades folclóricas brasileiras” e que o nome escolhido para o grupo é “BrAvus”, com o “B” e o “r” pintados de verde e amarelo respectivamente.

João Bid

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Dia do Saci

(publicado em 03/10/06)

Tânia Baccelli é uma grande amiga que exerce o mandato de vereadora em Sorocaba. Minha admiração por ela vai aumentando a cada “bola dentro” que ela dá na sua atuação política.

Primeiro, ela veio com o resgate da memória ferroviária, à frente de inúmeros eventos pela transformação da Estação Ferroviária de Sorocaba em um espaço cultural. Me parece que o movimento vem obtendo sucesso.

Agora, ela conseguiu aprovar um projeto de lei que institui o “Dia do Saci” em 31 de outubro, confirmando o que sempre pensei dela: uma pessoa voltada para o resgate de nossa identidade cultural; exemplo de luta pela valorização de nossa cultura e, porque não dizer, contra o preconceito que o próprio brasileiro tem para com suas raízes culturais.

Cheguei em casa com a notícia e foi uma festa só. Maracatu e Lambada, os sacis, não conseguiram disfarçar a satisfação de ver reconhecida na cidade vizinha a importância secular de seus familiares para o Brasil. Samba e Salsa, minhas duas cadelas, mostravam no olhar o orgulho por serem amigas de figuras tão importantes.

Acompanhei o processo e soube que o projeto foi vetado pelo prefeito de Sorocaba.

Pra quem não sabe, o prefeito de Sorocaba é o Vitor Lippi, mairinquense que chegou a ser vereador em nossa cidade.

Lembro-me de minha juventude e encontro o Vitor fazendo parte de minha roda de amigos, quando, por exemplo, nos convidou para um final de semana na fazenda de sua família. A fazenda era próxima da represa Itpararanga, com muita mata, enfim, um lugar apropriado para a criação de sacis, tanto que cheguei a ver muitos deles naquele local. Comentei, à época, que a família do Vitor era muito sensível, exatamente porque entendi que ela criava sacis, o que demonstrava a preocupação com a preservação desse mito fantástico. Talvez aquele fato tenha me influenciado ao ponto de me tornar criador de saci e ter lá em casa o Maracatu e a Lambada.

O Vitor acabou vetando o projeto que instituía o “Dia do Saci” e fico sem saber o que ocorria de verdade naquela fazenda, encontrando apenas uma explicação: eram sacis sem terra, que estavam ocupando aquele lugar, que, por direito cultural, pertencia a eles também.

Dias depois, recebi a notícia que o veto havia sido acolhido, pois apenas a minoria dos vereadores votou por sua derrubada e fui obrigado a levar a triste notícia para meus “hóspedes”.

Cheguei na lavanderia e Lambada estava brigando com Maracatu, porque este, desde o dia que eu havia dado a notícia, queria, porque queria, botar terno e gravata para assistir a promulgação da lei. “Apenas alguns vão te ver; só os mais sensíveis, e estes, querem te ver como você é.”, disse Lambada, com expressão de indignação. “Mas essa data é muito significativa para mim.”, retrucou Maracatu. Salsa, a cadela mais tímida, disse que achava muito engraçado ver Maracatu de terno. Samba, a cadela mais sapeca, já estava dando opinião na cor do terno.

Acho que apenas olhando para mim todos perceberam que eu vinha com notícia ruim e se calaram para ouvir. Vacilei, mas não tive como escapar. Contei tudo de uma vez só. Lambada encostou-se à máquina de lavar roupas, como se tivesse tido uma vertigem, e as lágrimas começaram a correr de seus olhos. Maracatu, num salto, pulou pra cima da prateleira, fechou a cara e não se manifestou. “Eles não entenderam nada.”, disse Salsa e se enfiou em sua casinha. Samba só reagiu quando contei que a bancada evangélica chamou os sacis de entidades diabólicas. “Sorocaba é uma cidade brasileira ou não?”, perguntou Samba, já se derramando em prantos. Acenei positivamente e ela questionou: “Será que eles nunca leram sobre o folclore brasileiro? Fico imaginando a reação da Inezita Barroso com esse acinte.”

Do alto da prateleira, Maracatu fechou a conversa: “Investindo 0,5 % do orçamento em cultura, este país vai ficar muito tempo ainda nesta crise de identidade cultural.”

João Bid

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

SAMBA, SALSA E OS LIBANESES

(publicado em 07/09/06)

Nesse tempinho que parei de escrever, até guerra aconteceu, mas as coisas em casa continuam as mesmas com relação ao dia-a-dia das minhas cadelas e do casal de sacis.

Só foi estourar aquela bobagem de guerra no Líbano, pra Samba passar o dia inteiro na fossa.

Ocorre que, poucos dias antes, o Michel, um grande amigo libanês, passou o dia em casa com a família. Pra variar, a Samba se apaixonou por ele e por todos os seus familiares. A Salsa sempre é mais cabreira, demora pra pegar intimidade, mas, se bem tratada, se entrega. Assim, as duas ficaram amigas da família do Michel e foi inevitável que elas associassem a guerra aos novos amigos.

A Salsa, menos passional, veio me perguntar se eu já havia ligado pro Michel. Eu disse que sim e que o sufoco era muito grande, mas os parentes dele estavam protegidos nas montanhas e outros estavam saindo do país. Salsa foi pra lavanderia explicar pra Samba, mas não adiantou muito. Ela preferiu ficar quieta em seu canto até que Maracatu e Lambada voltassem do Líbano com notícias mais concretas.

É! Maracatu e Lambada se mandaram pro local da guerra prometendo voltar no outro dia.

O quintal em total silêncio, Samba na lavanderia e Salsa na varanda para que tivéssemos a sensação de vigilância por parte dela, mas percebia-se que seu pensamento estava longe.

No dia seguinte, Maracatu e Lambada voltaram com notícias nada otimistas. Eles ficaram com a impressão que essa guerra iria muito longe.

Samba queria saber dos parentes do Michel e Lambada informou que a situação poderia ficar difícil, mas que naquele momento estava tudo bem. Só assim Samba ficou um pouco melhor, porém, inconformada. “É difícil pra gente conhecer pessoas tão belas e saber que a intolerância e o preconceito podem gerar conflitos tão graves. Conhecemos uma família de libaneses e gostamos muito, mas poderíamos ter conhecido uma família israelense e ter a mesma impressão.”, disse Samba. “É que você olha de uma forma diferente para as pessoas. Talvez olhe com o coração, não se importando com suas diferenças. Aliás, respeitando ou nem notando essas diferenças.”, disse Salsa, expondo o resultado de um dia pensativo na varanda. Maracatu acrescentou: “Some-se a isso a questão da cultura característica de cada lugar e o desrespeito chega ao limite do absurdo. O mínimo que se exige é que a cultura de cada povo seja respeitada.” Lambada deu o exemplo do Brasil, que agora come no MacDonald e ouve música americana, o que, em sua opinião, está contribuindo para desfigurar nossa cultura. “Uma guerra silenciosa.”, definiu Lambada.

Samba olhou pra mim e perguntou se existiam pessoas pensando nisso e tentando acabar com essa bobagem. Pensei em citar a luta dos grupos de defesa dos direitos humanos, mas me calei e fui pra dentro de casa, já que teria que contar que alguns equivocados ainda questionam esse trabalho.

Da varanda, ouvi Maracatu aconselhando as cadelas a pararem de latir pro pessoal do lixo nos finais de tarde, porque isso poderia significar uma forma de preconceito, mas Salsa tranqüilizou-o: “Aquilo é uma grande brincadeira. Você não percebeu que a gente late balançando o rabo. Então! O pessoal do lixo já conhece o código.”

Obs: Aquela guerra acabou e a família do Michel não foi atingida fisicamente, mas outras guerras já ocorreram, e continuam ocorrendo. E a Samba continua indignada com esse comportamento humano, “se é que podemos chamar assim esse comportamento”, como diz a Samba.

João Bid

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

VALEU GUARNIERI!

(publicado em 24/07/06)
No domingo de manhã, as cadelas, Samba e Salsa, perceberam o clima de tristeza que se instalou na nossa casa e ficaram na lavanderia.
A princípio estranhei não encontrá-las na porta da varanda quando levantei, mas logo entendi que elas sabiam que eu havia perdido algo importante e estavam respeitando minha dor.
Pensei em ir à lavanderia e contar pra elas de uma vez que Gianfrancesco Guarnieri havia morrido no dia anterior, mas voltei pra dentro de casa a fim de coordenar meus pensamentos e depois entrar no assunto, já que nossos animais acabam absorvendo todas nossas alegrias e tristezas. Se eu não soubesse abordar o assunto poderia deixá-las também muito triste.
Mais tarde, resolvi falar de Guarnieri a elas.
Cheguei na lavanderia e não fui recepcionado como sempre. Salsa estava deitada no sofazinho, com as duas patas dianteiras cruzadas, onde apoiava o queixo, e o olhar muito grave. Samba fazia de conta que comia, mas somente pra não olhar diretamente nos meus olhos.
Sentei sobre uma caixa acústica que fica, por falta de organização minha, no centro da lavanderia e fui logo contando que aquele amigo, de pouca convivência, mas importante amigo, havia morrido.
Samba criou coragem e me olhou. “Fale tudo o que você quiser. Estamos aqui pra te ouvir.” Nesse momento chegaram Maracatu e Lambada, que já sabiam do ocorrido. A gente não sabe muito bem como, mas os sacis acabam sabendo de tudo. Há uma ética, que também não entendemos muito bem, que não os deixa sair por aí contando tudo que sabem. Mas, que sempre sabem, sabem. Os sacis entraram na lavanderia e somente acenaram com a cabeça, confirmando que também estavam ali pra escutar.
Contei, o que passo a contar pra todos:
Conheci Guarnieri como dramaturgo em 1982, quando o GRUTA – Grupo de Teatro Amador, do qual eu fazia parte, montou a peça “Eles não usam black tie”, de Guarnieri, e ali já ocorreria a primeira coincidência, pois, na peça, existiam uns versos que o Tião cantava pra Maria, e, como não sabíamos a melodia, pedimos pro Kiko, um grande músico que também já se foi, musicá-los. O Kiko fez uma música que nunca mais esqueci.
Em 1994, Guarnieri convidou o Catavento e Marília Medalha pra cantarmos suas canções no espetáculo “Poeta, mostra a tua cara!” e ali tomamos contato com a música original daqueles versos musicados pelo Kiko em 82. A letra do Guarnieri havia sido musicada por Adoniran Barbosa. Por mais incrível que possa parecer, as harmonias e melodias são muito parecidas. Tanto que as duas melodias podem ser cantadas com a mesma harmonia, quase que integralmente. Comentei isso com Guarnieri e até cantei a melodia do Kiko pra ele.
Em 1997, Guarnieri concordou em participar do nosso CD “Adonirando” e fez uma interpretação inigualável na música “Nóis não usa as blequetais” , fechando o ciclo iniciado naquela melodia feita pelo Kiko. Não sei se alguém consegue entender a emoção que ainda sinto.
Apresentamos o espetáculo “Poeta, mostra a tua cara!” no Sesc Pompéia, em São Paulo; para alunos da PUC, em Campinas; no teatro da Universidade de Niterói; e no Teatro Carlos Gomes, na cidade do Rio de Janeiro. No Rio é que conheci de verdade Gianfrancesco Guarnieri. O dramaturgo, poeta, ator e político, eu já conhecia, mas no Rio é que conheci o ser humano. Foram muitas as lições de vida em todos os aspectos.
À época, Guarnieri tinha uma coluna no jornal “O Estado de São Paulo”, onde escrevia sobre as conversas que mantinha com seus cachorros. Numa delas, ele até relatou uma história que contei pra ele lá no Rio. Vem dali, a idéia de contar as minhas conversas com as cadelas e os sacis.
Depois disso, compus uma canção, em parceria com Lula Barbosa, e dediquei a ele. A canção está gravada no meu CD “O Tempo e a Paciência”.
Meu último contato com Guarnieri foi há uns dois anos, quando ele me ligou pra agradecer pela canção e cumprimentar pelo CD “Dom Casmurro na Canção”, que eu havia lançado naquela época. E essa foi a última demonstração da generosidade daquele amigo maravilhoso para comigo, quando, inclusive, me contou que começava a sofrer com a doença que o levou.
Quando parei de falar, estavam todos muito tristes com minha história e Samba fechou o momento dizendo: “Estes é que são os grandes momentos da vida da gente e devem ser guardados. Os pequenos?! Esqueça, ou faça que nem percebeu que ocorreram.”
João Bid

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

AS CADELAS E OS SACIS JÁ ESTÃO ENSAIANDO

(publicado em 10/07/06)

O que deveria ser uma grande festa acabou se resumindo em palavra: decepção.

Maracatu e Lambada chagaram ontem da Alemanha; ficaram quinze dias acompanhando a copa e, mesmo com a queda do Brasil, resolveram ficar por lá. É claro que poderiam ter voltado várias vezes pra casa, já que, pra eles, estar lá ou aqui é uma questão de um pulinho; literalmente. Mas, arranjaram um cantinho por lá e ficaram.

Ao chegarem, o assunto “copa do mundo” já estava vencido, não só porque o Brasil perdeu, mas porque Samba e Salsa comemoravam a grande notícia da semana: A Prefeitura de Mairinque fará um convênio com a Sociedade Recreativa Mairinque - SRM e transformará o antigo cinema num Centro Cultural, com teatro.

Maracatu e Lambada não tiveram tempo sequer de mostrar suas habilidades com a língua alemã, porque a Samba, depois de dar os abraços e as boas vindas, foi logo anunciando: “Finalmente Mairinque vai ter um teatro.” Lambada, que é mais sensível às artes que Maracatu, não se conteve e, depois do susto, se pôs a chorar de alegria. Maracatu, ainda meio chateado com a derrota do Brasil, definiu: “Nada como um dia após o outro. Um dia você está triste e no outro recebe uma notícia que só dá alegria”. Quando cheguei na lavanderia, nem o fato de o local estar todo alagado, resultado da enorme chuva que caiu na madrugada, foi motivo para reclamações, porque todos estavam muito felizes com a boa nova.

O silêncio só se estabeleceu, quando falei que já conhecia a notícia. “Desde quando você sabe disso?”, perguntou a Salsa. Respondi que esse projeto faz parte do programa do atual prefeito. “E por que você não falou antes? Eu não precisa passar por mal informada.”, esbravejou a Salsa, me mostrando um artigo que falava sobre a falta de informação das minhas cadelas, Samba e Salsa, em resposta ao artigo “A vida é tão simples...”.

Maracatu interferiu na conversa pra dizer que nossa discussão era inócua, porque, agora, Mairinque terá um Centro Cultural e isso é o que importa, mas Salsa insistiu em saber o porquê de estarmos preocupados em reivindicar a construção de um teatro, sendo que estava prevista a reforma do cinema e Mairinque terá um teatro em breve.

Expliquei que a idéia de reformar o cinema é antiga e muito boa, mas nem podemos imaginar o tempo que isso levaria para se concretizar, por isso, insisto na idéia de se construir um teatro pequeno para atender a demanda existente, que, aliás, cresce a cada dia, enquanto esperamos a reforma do cinema, que pode demorar vários anos. “No máximo dois anos e meio.”, enfatizou Lambada. Perguntei como ela havia chegado a essa conclusão. “Se essa reforma está no programa deste governo, obviamente ela ocorrerá neste governo, que termina daqui a dois anos e meio. Mas o artigo que lemos promete pra este ano”, concluiu a saci. Continuei expondo que o fato de um projeto estar no plano de governo de um político não garante que aquele projeto será executado: vide tantas promessas não cumpridas que testemunhamos todos os dias em todo o país, porém, Lambada, resumia tudo com três frase: “Promessa é promessa. Não há como não cumprir. O prefeito poderia passar por mentiroso e não ficaria bem para alguém que recebeu a confiança das pessoas nas urnas.” Maracatu, que é um saci mais vivido, sugeriu: “Já que você duvida, mantenha um placar na sua coluna: ‘Faltam dois anos e seis meses para terminar a reforma do cinema’ e vai mudando até que a obra seja inaugurada.” Respondi que pensaria no assunto e saí da lavanderia.

À tarde, eu e Lisa percebemos um movimento diferente no quintal e fomos quietinhos até a janela da lavanderia. O que vimos? Os figurinos das peças de teatro da Lisa espalhados e cada um escolhendo uma roupa; minha estante de partitura armada e Salsa regendo uma orquestra imaginária; Samba, com meu microfone, arriscando uns agudos; e Maracatu e Lambada iniciando uma coreografia de dança contemporânea.

Pensei comigo. Se não sair essa reforma do cinema, a decepção vai ser grande aqui em casa.

Obs: Não fiz o placar sugerido por Maracatu e o Centro Educacional e Cultural foi inaugurado três anos e três meses depois daquela data. Foi um sufoco pra conter a ansiedade das cadelas e dos sacis. Agora, vai ser complicado explicar que não vai ser fácil eles apresentarem naquele teatro os 35 espetáculos que montaram durante esse tempo.

João Bid

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A VIDA É TÃO SIMPLES...

(publicado em 28/06/06)

Conversávamos, eu e Lisa, enquanto fazíamos o almoço, sobre a comunidade que montamos na Internet, que pede a construção de um teatro em Mairinque. Falávamos sobre o objetivo da comunidade, que não é o de conseguir o milagre de aparecer um empresário, ou mesmo alguém do poder público, interessado em construir um em nossa cidade, mas sim, o de ampliar a discussão a um ponto em que o teatro se torne uma necessidade clara em cada membro da população mairinquense. “Aí vem você, com suas utopias”, disse a Lisa, me colocando no chão, principalmente quando vislumbrei a possibilidade de o município construir um teatro pequeno em cada escola municipal.

A Lisa acredita que as artes devem invadir todos os espaços existentes na cidade para que todos tenham acesso e possam formar uma opinião quanto ao tema. Concordo, mas pergunto o que fazer com o que já está sendo produzido nas várias áreas das artes em Mairinque. Tenho claro na minha cabeça, que a construção de um espaço adequado é de extrema necessidade para o município. A Lisa ri e me diz que “o problema é exatamente esse: está tudo claro na sua cabeça, só precisa sair dela.” Aí ficamos lamentando a nossa incapacidade de mostrar essa necessidade para as outras pessoas.

Nesse momento ouvimos: “Isso parece conversa de louco.”. Era a Salsa, a cadela mais tímida, que dormia próxima a janela da cozinha, e acordou com a nossa conversa.

Pus a cabeça pra fora e perguntei o porquê daquele comentário e Salsa falou que achava engraçado o fato de, no século em que nos encontramos, ouvir as pessoas questionando a necessidade de um teatro para uma comunidade. Se desculpando, disse que teve a impressão que nós, eu e Lisa, estávamos ficando loucos, já que só somos chamados de humanos, porque se supõe que lidamos com naturalidade com as coisas que estão diretamente ligadas à busca do belo, do fantástico, e isso, só se encontra valorizando-se as artes. “A construção de um teatro não deveria ser uma necessidade, mas uma realidade”, concluiu aquela minha cadela maravilhosa.

Antes de ir para junto da Samba, que naquele momento estava se esgoelando para o caminhão de lixo, ainda nos deu uma dica: “Não sei se vocês sabiam, mas o único caminho é juntar gente que pense do mesmo jeito. E aí sim colocar essa proposta, baseada na união dos interessados. Não acredito que os políticos não cedam a uma classe organizada.”

Há muito tempo tenho vontade de ver a classe artística mairinquense se organizar; já participei de várias tentativas, mas, infelizmente, nunca seguimos em frente. Sei que é a única forma de sermos ouvidos. Por enquanto, vou tentando participar das oportunidades que vão aparecendo e continuo trocando idéias com os sacis e as cadelas que moram em casa.

Penso que posso aprender muito, pois, para eles, a vida é tão simples...

Obs: A reforma do antigo cinema foi realizada e o teatro inaugurado em outubro deste ano. Recentemente a Salsa voltou ao assunto. “Agora, é ter um pouco mais de paciência pra esperar que o espaço seja dotado dos equipamentos necessários e entregue aos artistas locais”, disse Salsa, configurando uma expressão que até agora não sei se era de convicção ou dúvida.

João Bid

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

ESSES TAIS SERES HUMANOS

(publicado em 02/06/06)

“Eu e Salsa vamos embora! Lamento deixar Maracatu e Lambada, que formam um casal maravilhoso.”

“Sobre o que você tá falando, Samba?”, perguntei, tentando enxugar os olhos daquela cadela que eu adoro. Mas, ela se esquivava.

Samba, ainda soluçando, fez um longo discurso, não permitindo a intervenção de ninguém. Ficamos todos ouvindo e Samba falava olhando em meus olhos. Dos seus, somente lágrimas.

“Você poderia ter vindo falar diretamente comigo e com a Salsa. Sei que não é bonito escutar conversas alheias, mas depois que viemos pra esta casa de madeira, é impossível não escutar o que você e a Lisa estão falando lá dentro. E, desta vez, foi demais. Vamos embora Salsa, não temos mais nada a fazer aqui.”. Já iam saindo, quando entrei na frente das duas e perguntei se pelo menos eu poderia saber o que havia dito pra causar esse “problemão”.

“Eu até entendo que as pessoas tenham o direito de fazer suas escolhas, mas a Samba ficou muito magoada. Acho melhor nós irmos embora e não falarmos mais sobre isso.”, disse Salsa, que fingia manter o equilíbrio, mas percebia-se que estava visivelmente abatida também.

Insisti que eu também tinha o direito de saber o porquê daquilo tudo. A Lisa, bastante sensibilizada com a cena e quase chorando, também pedia para que Samba e Salsa dessem a oportunidade para que nos defendêssemos.

Depois de muito insistirmos, Samba resolveu falar. “Nós ouvimos vocês dizendo que já passa da hora dos negros tomarem todos os espaços e que a dívida com os negros é muito grande, portanto, é muita injustiça os brancos ficarem com todos os privilégios. Se vocês gostam mais do Maracatu e da Lambada, nós não temos nada contra, mas querer que eles tomem todos os espaços da casa, deixando a gente num segundo plano só porque somos brancas. Pra nós, seria o fim. Aliás, é o fim, porque estamos indo embora.”, sentenciou Samba.

Eu, a Lisa, Maracatu e Lambada começamos a rir, o que deixou Samba mais puta ainda.

Levamos algum tempo para explicar pras duas que o quê elas ouviram, a gente havia dito mesmo, mas que não estávamos falando delas e do casal de saci. Falávamos da questão do negro no Brasil e no mundo. Tivemos que contar um pouco sobre a escravidão no país; sobre o preconceito que o negro enfrenta até hoje, aqui e no mundo; sobre a injusta distribuição de renda; enfim; sobre as injustiças em geral.

Salsa entendeu rapidamente e já voltou com suas coisas para a lavanderia, mas Samba ainda relutava, até que Maracatu conseguiu convencê-la que, pelo menos em nossa casa, todos são tratados com igualdade.

Mais para o fim da tarde, Samba já havia voltado a sorrir e, enquanto Salsa dormia, me chamou na varanda para conversarmos mais sobre a escravidão. Ela desconhecia esse fato e não deixou de dar sua opinião.

“Para nós, cachorros, que estamos acostumados a olhar todos os nossos iguais como iguais de verdade, é muito difícil entender que os seres humanos têm a coragem de tratar seus iguais dessa forma. Não dá pra entender que um homem amarre outro homem num tronco e lhe faça passar por um castigo, como vocês dizem, desumano; ou que um homem fique à disposição de outro homem, só porque sua pele é negra. É!... Definitivamente, eu vou demorar muito tempo pra entender esses tais seres humanos.”. Assim que parou de falar, Samba se pôs a lamber as manchas negras existentes entre seus pelos brancos.

Eu... me calei.

João Bid

terça-feira, 24 de novembro de 2009

CALCINHA PRETA? NINGUÉM GOSTOU.

(publicado em 23/05/06)

Sábado estávamos todos na sala: Eu e Lisa, deitados no sofá; Samba e Salsa, no tapete; Maracatu, em cima do barzinho; e Lambada, enrolada na cortina. Sempre acreditamos que dentro da casa só nós devemos ter acesso, mas, depois da vinda de Maracatu e Lambada, vez ou outra, convidamos todos pra entrar, mesmo porque as cadelas já deixaram bem claro que se sentem melhor no espaço reservado pra elas, fora da casa. Com relação aos sacis, mesmo sabendo que não adianta fechar portas, há uma relação de respeito pelos espaços e eles só entram em casa quando convidados.

Ocorre que sábado estava muito frio e decidimos não sair de casa, mesma decisão tomada pelos sacis. Samba e Salsa não saem mesmo. Nem querem! Então, convidamos todos para assistir televisão.

Televisão é algo difícil de engolir no dia a dia e no sábado então, é terrível. Com exceção das TVs públicas, nada presta. São vários programas religiosos e os humorísticos são sem graça, que mais servem para os onanistas de plantão do que para o entretenimento das pessoas que não estão afins de sair de casa. Essa observação, aliás, foi feita por Maracatu, que foi quem insistiu em não assistir aos programas das TVs públicas, se dizendo de saco cheio de programas culturais.

Trocando de canais, encontramos um daqueles programas onde as bandas mais famosas do país apresentam seus sucessos. Eis que o apresentador chama o grupo “Calcinha Preta”. A Samba ficou assustada, porque, dias antes, ela havia tomado uma dura, porque tentou roubar uma calcinha preta do varal, mas se aliviou, quando viu quatro pessoas entrando no palco. Lambada comentou: “Nossa... quanta gente bonita!”, exatamente quando começava a apresentação. Após alguns segundos, Salsa perguntou o quê era aquilo. A Lisa respondeu que achava que era um grupo de forró. Achava, porque não estava conseguindo identificar o ritmo. Maracatu perguntou o porquê de tantas pessoas para cantar uma única melodia. Eu não soube explicar, mas tentei falar, quando a Salsa pediu silêncio pra escutar a letra. Nas primeiras rimas, Lambada se manifestou: “Acho que isso é um programa humorístico. A letra é uma piada. Eles estão rimando coração com emoção e isso é coisa primária. É pra morrer de rir.”.

Falei que várias músicas tinham somente o objetivo de fazer as pessoas dançarem e fui interrompido pela Samba, que alertou para o fato de que nem pra dançar “aquela coisa” servia.

Olhei para Salsa e não tive tempo de perguntar se estava gostando. Ela se levantou, virou para a Samba e a convidou pra irem pro quintal. Samba nem vacilou: pediu licença e saiu com a Salsa. Olhei para trás e não vi mais Maracatu e nem Lambada.

Antes de mudarmos de canal, eu e Lisa debatemos um pouco sobre a liberdade dos artistas de se manifestarem e o cuidado que temos que ter ao emitirmos nossas opiniões para não sermos taxados de preconceituosos.

Cá entre nós, também não gostei do tal “Calcinha Preta”. Concordo com as cadelas e com os sacis. Sabe quando uma pessoa fica numa situação constrangedora na frente da televisão e acaba sentindo uma certa aflição? Foi assim que me senti. Nunca vou revelar essa minha opinião em público para continuar politicamente correto, mas fico muito triste em saber que existe muita coisa boa sendo produzida no país, porém, o brasileiro está “proibido” de ter acesso. Uma pena!

Engraçado mesmo foi a conversa de quintal, no domingo de manhã. Salsa fala pouco, mas vai fundo quando abre a boca. “Foi pior que filme de Silvester Stalone. É traumático ver aqueles jovens do tal ‘calcinha preta’ tentando cantar, tentando dançar, tentando agradar e conseguindo só encher o saco.”, disse ela.

João Bid

RAÍZES CULTURAIS NA RAVE

(publicado em 08/05/2006)

Eu e a Lisa mudamos de casa recentemente. Aliás, minha família deve ser a que mais mudou, e muda, de residência em Mairinque. Nunca fomos proprietários de imóvel, por isso, passamos nossas vidas mudando de casa.

Desta vez, ficamos mudando durante uns três dias e a cada móvel que saía, Samba e Salsa ficavam mais cabreiras. “Acho que vocês estão tentando nos enganar e vão acabar abandonando a gente aqui. Vocês já estão mudando e a gente nem conhece a nova casa.”, disse a Samba. “Não esquenta, Samba. A gente se vira”, ironizou a Salsa. Por mais que eu explicasse que queria que as coisas ficassem em seus lugares para depois levá-las, as cadelas não acreditavam. Maracatu e Lambada estavam mais tranqüilos, porque já tinham visitado a nova casa em suas andanças noturnas e sabiam que tudo estava sendo preparado para que todos: eu, a Lisa, as cadelas e os sacis, ficássemos bem instalados. O casal de sacis até já tinha ajeitado um cantinho no novo lar.

Terminada a mudança, levamos as cadelas e, em apenas dois dias, elas ficaram totalmente adaptadas, já que há muito espaço e, agora, com muita grama e terra. As duas estão no céu e a Samba vive dando risada sozinha. Salsa está feliz, mas, como de praxe, não demonstra.

No sábado, dia 06/05/06, Maracatu e Lambada saíram às oito da noite sem avisar para onde iam. Eu e a Lisa nos preparamos para nossa primeira saída da nova casa, visando curtir a noite. As cadelas, embora tranqüilas em ficarem sozinhas, nos olhavam de canto de olhos, demonstrando estranhamento. Samba não se conformava com o nosso destino noturno. “Vocês vivem pregando a questão das raízes culturais, a divulgação da música brasileira e vão pra Olocofest, uma rave?”, questionava ela. Eu explicava que a festa era organizada pelos nossos sobrinhos, que são DJs, e que, além de prestigiar, eu entendia que é preciso estar ligado em todas as manifestações. A Lisa defendia que, como trabalha com adolescentes, precisava estar atenta às coisas que eles estão produzindo para entender essa linguagem tão rica em sua essência, além dela, Lisa, adorar dançar. A Salsa não se manifestava. Ficava apenas cantando trechos de músicas do Milton Nascimento com a intenção clara de me provocar. Mas fiz que não ouvia.

Passamos na casa das nossas sobrinhas, a Keith e a Laís, que debutavam nesse tipo de festa, e fomos pra Olocofest. Quando chegamos, uma surpresa. Adivinhem quem encontramos, de cara?!... Isso mesmo! Maracatu e Lambada estavam no meio da moçada, felizes, pulando com as mãos para o alto, imitando o DJ, que naquele instante era um dos nossos sobrinhos. Aí, o susto foi nosso. “O que vocês estão fazendo aqui?”, perguntei. Maracatu respondeu com outra pergunta: “Por que essa cara de assustado?”. Disse que estava admirado com o fato de um casal de sacis, expoentes do folclore brasileiro, estar numa “Rave”, dançando música eletrônica. Lambada começou a rir, nos chamou para um canto, onde o som era um pouco mais baixo, e nos deu uma aula de raízes culturais. “Olhem para o que está acontecendo aqui! Percebam que estamos numa tenda, que poderíamos chamar de oca. Sim, oca! Como as que seus ancestrais indígenas viviam. Sintam a batida da música. Elas nos lembram os tambores que os índios usavam para se comunicar e para embalar suas festas. E os passos da dança, se assemelham às danças usadas nos rituais sagrados dos índios que habitaram esta terra.”, ensinou Lambada. Maracatu completou: “Ouçam a linguagem utilizada. É quase um mantra, portanto, não importa o idioma. O que importa é a sonoridade. Poderia muito bem ser o Tupi, ou o Guarani. Entendem agora o porquê de estarmos aqui?”.

As explicações foram tão claras, que deixei meu pré-conceito de lado e curti a festa, que, aliás, estava bem legal.

No domingo, acordamos e ouvimos no quintal a conversa rolando, entre os sacis e as cadelas, sobre a festa. Não saberia reproduzir a conversa toda, mas marcou a fala da Salsa, depois das mesmas explicações feitas pelos sacis: “Entendi, entendi. Não há como escondermos nossas raízes culturais. Se as negarmos, estaremos sendo falsos. A Olocofest só foi boa, porque os meninos colocaram suas verdades, suas raízes, naquele som.”.

Não digo que estarei em todas as “raves”, porque realmente acho o som um pouco alto, principalmente os graves, que entram em meu peito, dando a impressão que vão mudar o ritmo do meu coração, mas acho que passei a entender melhor essa manifestação.

João Bid

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A REUNIÃO COM AS CADELAS E OS SACIS

(publicado em 03/04/2006)

Nem bem cheguei no quartinho e a Samba disparou a falar. Ela falava uma palavra atrás da outra me olhando nos olhos. Salsa somente acenava positivamente a cada frase de Samba. Maracatu ao meu lado quieto. E Lambada, passando a mão nas costas de Samba, vez ou outra, pedia pra ela se acalmar.

Eu, encostado no batente da porta, com os olhos marejados, maravilhado com o momento. Minha cadela estava à minha frente falando comigo. Não prestei atenção em uma só palavra; estava extasiado com o timbre da voz de Samba: uma mistura de Leila Pinheiro com Gal Costa. Sabe aquela voz aguda, mas aveludada? Pensei que qualquer dia iria testar a afinação da voz de Samba. “Se o resultado for positivo, vou convidá-la a fazer as vozes femininas no meu show.”, dizia meu subconsciente.

Olha eu achando que todo mundo sabe do que estou falando! Obviamente, várias pessoas não leram meu artigo anterior. Então, vou explicar rapidamente. Estou falando sobre a primeira vez que falei com minhas cadelas, a Samba e a Salsa. Uma semana depois que trouxe para morar comigo o casal de sacis, Maracatu e Lambada, numa reunião marcada para acordarmos algumas coisas com relação à convivência entre mim; minha mulher, a Lisa; as duas cadelas; e o casal de sacis. Podem me chamar de louco, mas tenho certeza que muitas pessoas que estão lendo este artigo, se de fato forem muitas, conversam com seus cachorros diariamente e sabem do que estou falando.

A Samba é a cadela que sempre está à frente das coisas, a que toma as iniciativas. A Salsa é mais recatada, mais paciente, e sempre coloca a Samba para resolver as paradas. O Maracatu, o saci macho, gosta de aprontar suas traquinagens, mas tem seu lado mais centrado, colocando suas opiniões sempre com muita consciência, diria que ele é quase um intelectual, com o defeito de ser um pouco machista. Lambada, a saci fêmea, é uma Lady. Traquina também, mas com gosto refinado, recatada e sempre deixando que Maracatu imagine que a última palavra é a dele.

Mas, voltando ao assunto, quando a Samba parou de falar, a Salsa completou, com sua voz mais grave e um pouco rouca, algo quase sensual, “Samba! Acho que ele não está prestando atenção.”

Resumindo, Samba fez um apanhado deste tempo em que ela e a Salsa moram comigo, as alegrias, as tristezas, os protestos etc. Falou sobre o fato de estarem se dando bem com Maracatu e Lambada e sobre códigos que deveríamos cumprir daqui pra frente. Mas, uma frase ficou em meus ouvidos: “Vocês não poderiam ser chamados de humanos...”.

Já refeito do êxtase, questionei sobre aquela frase, para o que, Salsa respondeu, “Às vezes a Samba fala demais. Não é nada contra você.”. Samba retrucou se dirigindo a mim, “Falo demais, reconheço que falo demais, mas me responda se podemos pensar outra coisa de pessoas que se curvam para as ordens de um George W. Buch, que só pensa em invadir a cultura dos povos, com a pretensão de impor sua cultura através de armas?”. Observei que, no quartinho, todos acenaram positivamente e fiquei sem resposta ante a tamanha lucidez. Só pude concordar.

De lá pra cá, assumi minha condição de analfabeto cultural e não deixo de me reunir com as cadelas e os sacis periodicamente para beber daquela fonte tão cristalina.

Tenho levado altos papos e pretendo reproduzi-los aqui.

As cadelas e os sacis não gostam dessa exposição e até me proibiram de contar estas coisas. Mas, depois de lerem o primeiro artigo, acabaram concordando que ninguém vai acreditar e eles ficarão isentos de responsabilidades sobre qualquer manifestação.

João bid

MINHAS CADELAS E MEUS SACIS

(publicado em 21/06/2006)

Há quase seis anos, no final de 2000, Samba e Salsa, minhas duas cadelas, vieram morar comigo, vindas das mãos carinhosas e caridosas da Terezinha Magela. Nasceram na rua e a Terezinha as recolheu para sua casa, onde ficaram até que eu as levasse pra minha.

Nossa relação sempre foi muito legal: eu dou ordens e elas não atendem; elas querem sair na rua, eu não deixo; etc., mas ficou ainda mais interessante, quando, recentemente, elas resolveram conversar comigo. E só se manifestaram porque eu levei um casal de sacis, o Maracatu e a Lambada, pra morar em casa também e, no começo, elas quase enlouqueceram.

Hoje, convivem, a Samba, a Salsa, o Maracatu e a Lambada, em plena harmonia, mas logo que o casal chegou, foi um horror.

Por falta de espaço, tive que colocar o casal de sacis junto com as cadelas e a confusão se estabeleceu logo no primeiro dia. Lembro-me que o casal chegou um pouco antes do almoço, horário em que as cadelas costumam dormir. Maracatu não resistiu aos pelos longos da Salsa e foi logo fazendo vários cachinhos, que a Salsa odiou, mas, como ela, a Salsa, é muito tímida, não soube reagir, por isso, foi acordar a Samba, pra que esta, que é mais esperta, resolvesse o caso, mas a Samba estava numa correria danada, pois a Lambada a acordou puxando seu rabo, coisa que ela não aceitou. Eu, sem qualquer experiência, tentava acabar com a confusão aos gritos, mas, por mais que gritasse e corresse de um lado para o outro, nenhum deles me ouvia, ou fingia não ouvir.

A confusão só acabou quando Maracatu percebeu que a Samba estava quase mordendo a perna da Lambada. Maracatu deu um salto, pegou a Lambada pela cintura e, numa agilidade impressionante, pulou para o quintal da vizinha.

O ambiente ainda estava tenso, quando Salsa me olhou muita séria, virou e se dirigiu para o quartinho. Samba então, que é sempre muito alegre, me deu as costas e, sem balançar o rabo, acompanhou a Salsa. Naquele dia, elas não comeram, fizeram xixi nos quatro cantos do quintal e nem se aproximaram da porta da lavanderia, o que me deixou muito preocupado.

Nos dias que se seguiram, percebi que a confusão continuava, mas resolvi não me meter, ficando apenas na observação para evitar algo pior. Mas, não me meti.

As cadelas sempre tiveram o hábito de cochilar na parte do dia para ficarem mais atentas à noite, porém, naqueles dias, elas só conseguiam dormir à noite, quando o casal de sacis saía para passear e voltava somente de manhã.

Passados dez dias, Maracatu bateu na porta da lavanderia e disse que precisava conversar comigo. A princípio me assustei, porque não sabia que os sacis falam, mas estava tão preocupado em resolver a situação, que deixei pra analisar o fenômeno mais tarde. Sentamos no degrau e Maracatu me falou que haviam chegado num acordo e a situação estava controlada, mas Samba e Salsa queriam fazer uma reunião para selar o acordo e ter uma conversa aberta e muito séria comigo. Imediatamente perguntei se as cadelas também podem falar. Maracatu riu e me contou que os cachorros só não falam com a gente, porque acham que não vale a pena. Os cachorros, vim saber depois, entendem que seria muito difícil explicar para nós, seres humanos, que nossos valores são absurdos e só dificultam nossas vidas. Isso, contarei depois.

Na hora marcada, estávamos lá, eu, Samba, Salsa, Maracatu e Lambada, para nossa reunião, que só terminou quando Maracatu e Lambada precisaram sair para a caminhada diária, mas foi muito produtiva.

Só não conto agora, porque a reunião merece um artigo inteiro. Quem sabe o próximo.

João Bid