quarta-feira, 25 de novembro de 2009

ESSES TAIS SERES HUMANOS

(publicado em 02/06/06)

“Eu e Salsa vamos embora! Lamento deixar Maracatu e Lambada, que formam um casal maravilhoso.”

“Sobre o que você tá falando, Samba?”, perguntei, tentando enxugar os olhos daquela cadela que eu adoro. Mas, ela se esquivava.

Samba, ainda soluçando, fez um longo discurso, não permitindo a intervenção de ninguém. Ficamos todos ouvindo e Samba falava olhando em meus olhos. Dos seus, somente lágrimas.

“Você poderia ter vindo falar diretamente comigo e com a Salsa. Sei que não é bonito escutar conversas alheias, mas depois que viemos pra esta casa de madeira, é impossível não escutar o que você e a Lisa estão falando lá dentro. E, desta vez, foi demais. Vamos embora Salsa, não temos mais nada a fazer aqui.”. Já iam saindo, quando entrei na frente das duas e perguntei se pelo menos eu poderia saber o que havia dito pra causar esse “problemão”.

“Eu até entendo que as pessoas tenham o direito de fazer suas escolhas, mas a Samba ficou muito magoada. Acho melhor nós irmos embora e não falarmos mais sobre isso.”, disse Salsa, que fingia manter o equilíbrio, mas percebia-se que estava visivelmente abatida também.

Insisti que eu também tinha o direito de saber o porquê daquilo tudo. A Lisa, bastante sensibilizada com a cena e quase chorando, também pedia para que Samba e Salsa dessem a oportunidade para que nos defendêssemos.

Depois de muito insistirmos, Samba resolveu falar. “Nós ouvimos vocês dizendo que já passa da hora dos negros tomarem todos os espaços e que a dívida com os negros é muito grande, portanto, é muita injustiça os brancos ficarem com todos os privilégios. Se vocês gostam mais do Maracatu e da Lambada, nós não temos nada contra, mas querer que eles tomem todos os espaços da casa, deixando a gente num segundo plano só porque somos brancas. Pra nós, seria o fim. Aliás, é o fim, porque estamos indo embora.”, sentenciou Samba.

Eu, a Lisa, Maracatu e Lambada começamos a rir, o que deixou Samba mais puta ainda.

Levamos algum tempo para explicar pras duas que o quê elas ouviram, a gente havia dito mesmo, mas que não estávamos falando delas e do casal de saci. Falávamos da questão do negro no Brasil e no mundo. Tivemos que contar um pouco sobre a escravidão no país; sobre o preconceito que o negro enfrenta até hoje, aqui e no mundo; sobre a injusta distribuição de renda; enfim; sobre as injustiças em geral.

Salsa entendeu rapidamente e já voltou com suas coisas para a lavanderia, mas Samba ainda relutava, até que Maracatu conseguiu convencê-la que, pelo menos em nossa casa, todos são tratados com igualdade.

Mais para o fim da tarde, Samba já havia voltado a sorrir e, enquanto Salsa dormia, me chamou na varanda para conversarmos mais sobre a escravidão. Ela desconhecia esse fato e não deixou de dar sua opinião.

“Para nós, cachorros, que estamos acostumados a olhar todos os nossos iguais como iguais de verdade, é muito difícil entender que os seres humanos têm a coragem de tratar seus iguais dessa forma. Não dá pra entender que um homem amarre outro homem num tronco e lhe faça passar por um castigo, como vocês dizem, desumano; ou que um homem fique à disposição de outro homem, só porque sua pele é negra. É!... Definitivamente, eu vou demorar muito tempo pra entender esses tais seres humanos.”. Assim que parou de falar, Samba se pôs a lamber as manchas negras existentes entre seus pelos brancos.

Eu... me calei.

João Bid

Um comentário:

  1. Nossa cachorra Jully - uma legítima SRD-P(Sem Raça Definida-Preta) - já estava com as malas prontas pra ir aí pra Mairinque no começo da história. Não entende muito bem esse lance de preconceito. Queria ir mesmp por causa do quintal grande. Adorei Joãozinho! bjs PriZambrini

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