segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A VIDA

“A vida é um grande bate papo, que começa no ventre da mãe e não tem fim.”, disse Maracatu, que chegava acompanhado de Lambada à varanda, onde estávamos eu, Lisa e Tom Ravazoli (Não confundir com Tom Diego Ravioli, nosso gato. Tom Ravazoli é o ator que inspirou o nome do nosso gato) conversando após a primeira apresentação do “Causos e Poesias” para os professores da rede municipal de São Roque, na quinta-feira, dia 15.
“Causos e Poesias” é o espetáculo criado para divulgar o livro  “Ida e Volta”, de Roberto Godinho, escritor são-roquense. No espetáculo apresentamos as histórias e as poesias contidas no livro através da interpretação dos atores Tom Ravazoli e Rodholfo Heinz e da atriz Daniela Campos; canções interpretadas por mim e Edson D’aísa; e relatos feitos pelo próprio autor. O espetáculo tem ainda, o roteiro de Isabel Pezzota e direção artística da Lisa Camargo.
Conversávamos sobre o prazer de participar daquele momento, que fala sobre as raízes culturais de Roberto Godinho, nascido em Canguera, um bairro da São Roque, e que tem em seu currículo uma graduação em química na USP, um mestrado em Washington e uma capacidade enorme de emocionar ao escrever e falar sobre sua Canguera. Hoje, Godinho e Inês, sua mulher, estão agregados a esse grande bate papo, que, segundo Maracatu, é a minha vida.
As cadelas e o gato dormiam, por isso, não participavam da conversa.
Tom Ravazoli, que já atingiu a sensibilidade necessária para dialogar com os sacis, perguntou o porquê daquela intervenção. “Eu e Lambada estivemos no espetáculo de vocês e lá comentei com ela que aquilo é vida. A troca é vida. A busca é vida. Tudo isso faz parte desse grande bate papo, que nunca termina.”, disse o saci. “Como não termina? Você se esqueceu da morte?”, interferi. “O bate papo continua através das coisas que você deixar. Suas idéias, seus projetos, sua arte vão continuar dialogando com as pessoas.”, falou Lambada, a saci, com extrema segurança.
Calamo-nos por um tempo, pois aquilo era profundo. Simples, óbvio, mas profundo. “Eu nunca tinha pensado nisso, mas vocês têm absoluta razão. Eu mesmo converso todos os dias com Brecht.”, revelou entusiasmado o Tom. A Lisa, que é uma voraz leitora, sorriu e disse que nem iria relacionar seus bate papos, pois sua lista seria imensa, mas não resistiu e exaltou Saramago e Augusto Boal, com quem, aliás, foi fotografada e cuja foto está exposta no corredor de nossa casa. Revelei que meus papos são diários com Kiko, Chico e Abê, pelas coisas que me deixaram na música. E contei que meu pai lutava contra o câncer e percebeu que perderia, por isso, pouco antes de morrer, me pediu que o levasse aos dois clubes da cidade. Não entendi, mas o levei. Nas secretarias dos clubes ele perguntou se estava em dia com as mensalidades. Num deles, faltava pagar o mês corrente, no outro, a mensalidade estava em dia. Ele deixou tudo em dia e entregou uma carta de demissão do quadro de associados em cada clube. Esse ato martela na minha cabeça diariamente.
“Pois é! O Godinho conversa com os trens de passageiros, que já não existem mais no Brasil, porque estes tiveram uma presença muito forte em sua vida. Foi o trem que o levou a Mairinque pra se formar no primário; depois, o levou a São Roque, para completar o segundo grau; e finalmente, o levou para São Paulo, para se graduar na USP.”, relatou Maracatu. “E quando ele falou do cheiro da mata orvalhada; o ar de Canguera com perfume da uva no fim da colheita; do gosto do doce de mandioca em calda que sua avó fazia? Não era um diálogo com o passado, porque tudo aquilo estava muito presente em sua mente. Isso é vida.”, afirmou Lambada.
“Meu deus! Vamos abrir uma cerveja, Tom?”, perguntei. “Eu não bebo, João.”, respondeu o Tom, que não demorou a refazer sua posição. “Abra uma. Acho que agora vai ser bom.” “Eu tomo um copo também.”, disse a Lisa.
Abri a cerveja e saudamos aquele momento. Maracatu e Lambada foram para o quartinho acordar as meninas e Tom, o gato, acordou com o bater dos copos; bocejou, cumprimentou o padrinho e contou que havia sonhado que estava no sossego da mata, esticado sobre as folhas secas, quando veio uma raposa e roubou o cacho de uva que ele estava comendo. “Aí, acordei apavorado, mas vi que me encontrava na segurança do meu lar.”, falou, sorrindo, o gato, que continuou. “Mas a vida não é essa segurança toda. Há momentos...”. “Ah, Tom, pode parar. Não vai filosofar sobre a vida também, vai?”, perguntou a Lisa. “Não. Eu ia dizer que há momentos de insegurança, como o que estou vivendo agora.”, revelou. “O que está acontecendo, Tom?”, perguntei apavorado. “A ração está acabando e não vi vocês falarem em comprar mais. Isso me deixa inseguro.”, respondeu o gato, olhando firme pra mim e pra a Lisa. A Lisa não agüentou e atirou o chinelo em sua direção. Ele desviou e saiu correndo. E rindo muito.

João Bid

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

TOM DIEGO

Naquela madrugada, ficamos um tempo acordados com os miados enfurecidos que vinham do quintal do vizinho. “Ele achou um gato pra brigar.”, disse a Lisa, se referindo ao Tom, nosso gato. “Fazia tempo que ele não saia de casa pra brigar.”, observei. “Apareceu algum gato novo na área.”, concluiu a Lisa.
De manhã, chega o Tom cansado e com as unhas esfareladas, procurando um espaço pra dormir.
Antes dele se acomodar, verifiquei se ele não apresentava nenhum machucado. Não, não tinha se machucado. Mais uma vez ele havia brigado e, pelo jeito, se saiu vitorioso, apesar de eu entender que numa briga não há vitoriosos. Todos perdem.
“Tom... Tom... vamos conversar!”, chamei. “Deixa ele dormir, João! Ele ta cansado.”, me aconselhou a Lisa. “Eu tô cansado. Deixa eu dormir e depois a gente conversa. Já sei que vocês não estão felizes com minhas brigas, mas depois explico.”, disse o Tom, já dando voltas e fazendo ninho no sofazinho laranja que temos na sala. “Ah! Ele sabe que fez besteira, mais uma vez.”, falei, me dirigindo à Lisa.
Todos os animais que vivem em casa têm dois nomes e um sobrenome; já os divulguei em outros artigos; o Tom é o único que tem apenas um nome e sobrenome. Pra quem não se lembra, ele se chama Tom Raviolli, uma homenagem a nosso amigo Tom Ravazolli. Depois dessas brigas, resolvemos dar um segundo nome ao Tom. Agora ele se chama Tom Diego Raviolli.
As pessoas da nossa geração devem estar pensando que Tom Diego é uma homenagem ao Zorro, pseudônimo daquele personagem justiceiro da nossa época, cujo nome era Dom Diego de La Vega, mas não é. O Diego, do Tom, é uma homenagem a um amigo, um dos nossos queridos “filhos”, que adora uma encrencazinha. Obviamente, ele sempre tem razão nessas brigas, como o nosso Tom, mas, vira e mexe, ficamos sabendo de mais uma.
Quando falei pra Lisa que o Tom passaria a se chamar Tom Diego, pelos motivos já expostos, ela disse: “Mas o Rodolpho vai ficar com ciúmes, pois ele sempre está com o Diego nessas encrencas”. É verdade. O Rodolpho sempre está ao lado do Diego nas brigas, mas escolhi Diego, porque, como o Tom, é ele quem ganha as brigas e sempre sai intacto. Em compensação, o Rodolfo sempre se dá mal.
Expliquei tudo isso, inclusive, na presença de Maracatu e Lambada, o casal de sacis, que havia acabado de chegar e estava sentado na tesoura aparente, que sustenta o telhado da nossa sala. “Nossa! O Rodolpho e o Diego são tão legais. Não dá pra imaginar que eles perdem tempo com brigas.”, disse, a sempre sensível, Lambada. Respondi que são duas pessoas maravilhosas, mas brigam. “Num momento em que o ser humano está necessitando de carinho, de compreensão...”, divagou Maracatu. “Pois é! O pior é que são duas pessoas sensíveis.”, disse a Lisa. “Mas são jovens.”, afirmou Lambada, que arrematou: “Mais tarde eles vão aprender a dar às costas para a ofensa; vão aprender a se colocar num nível superior a essas bobagens de machistas antigos. Mas, se são sensíveis, eles têm a chance de entender tudo isso mais rápido”.
“Eu sei o que é isso.”, disse o Tom, agora Tom Diego, acordando. “Nós temos a necessidade de defender nosso território; o compromisso de demarcar nosso espaço; e a vaidade de mostrar pras gatas da nossa área, quem é que manda no nosso quintal. Nada podemos fazer contra nossos instintos.”, concluiu o gato. “Pode parar Tom. Você está colocando Rodolpho, Diego e você no mesmo caldeirão, o que não está correto. Teoricamente, você tem um pouco de irracionalidade ainda e podemos entender essa coisa de não dominar o instinto. Não é o caso deles.”, argumentei. Nessa altura da conversa, as cadelas já estavam na porta da sala ouvindo a conversa e Salsa não resistiu à sua vontade de filosofar. “É mais fácil ter ódio. O ódio não inibe; o amor, sim. As pessoas têm vergonha de amar. É muito difícil você presenciar uma explosão de amor, enquanto que a manifestação de ódio é corriqueira entre os humanos. Precisamos pensar nisso...”, fechou a conversa nossa idosa cadela, que, em seguida, saiu cheirando as flores que nesta época do ano brotam das ervas daninhas e colorem nosso gramado.
Jamais vou contar este nosso papo pros nossos dois queridos, porque eles podem achar que nós só sabemos criticar e talvez não entendam que, por gostarmos tanto deles, acabamos sentindo as mesmas preocupações de pais verdadeiros; daqueles pais que querem criar seus filhos sem preconceitos, ligados às artes, amantes de livros e discos, enfim, daqueles pais que querem contribuir para que seus filhos sejam seres humanos de verdade.
Mas acreditamos que um dia eles, nossos queridos, vão entender que é menos dolorido para todos, tanto física como sentimentalmente, fugir das confusões e deixar os adversários com a sensação da vitória. Pode ser que eles aprendam com isso.    

João Bid

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O BATIZADO DA MARIA CECÍLIA DEU O QUE FALAR EM CASA

Fui ao batizado da minha sobrinha/neta, a Maria Cecília, no domingo, dia 7, e logo que cheguei na igreja vi que Maracatu e Lambada já estavam sentados ao pé da escadaria que leva ao altar. Eles não perdem um evento que tem a ver comigo ou com a Lisa, mas achei estranho o casal de sacis se interessar por um batizado. Não dei bandeira, mas fiz sinal pra eles não aprontarem nenhuma na igreja e eles concordaram, fazendo um gesto que dizia que eles sabiam onde estavam. Ainda bem que ninguém os viu e, se viu, não se assustou, ou não acreditou... Sei lá! Quem os viu e adorou, foi a Maria Cecília. Eles ficavam fazendo graça e ela sorria o tempo todo, o que deixou todos os presentes encantados com ela. A Maria Cecília é uma graça e me deixou muito feliz por não estranhar meus sacis. Até aí, tudo bem!
Após o batizado, eu e Lisa tínhamos um compromisso em São Roque e voltamos pra casa somente no início da noite. Todos estavam na varanda num papo barulhento, porque falavam ao mesmo tempo. O Tom, deitado na espreguiçadeira, a mesma que era da Rumba, mas a Rumba cresceu tanto, que não cabe mais naquele espaço; as cadelas, deitadas no chão; e o casal de sacis, que coordenava a conversa, sentado na mesinha. Desta vez a conversa era sobre Deus. Conversa, aliás, que começou depois que Maracatu e Lambada contaram sobre o batizado da Maria Cecília.
Eu e Lisa, cansados e percebendo a complexidade do tema, passamos no meio da turma e fomos entrando na casa. “Ajudem a gente a entender algumas coisas sobre Deus.”, pediu a Valsa. “Será que nós sabemos mais do que vocês?”, perguntou a Lisa. “É claro que sim. O Maracatu e a Lambada contaram pra gente sobre o batizado da Maria Cecília e, segundo eles, o padre falou o tempo todo sobre Deus. E você deve saber tudo, João, porque em nenhum momento questionou o padre.”, disse o Tom. “Saia dessa!”, me disse a Lisa, indo direto para o banho.
Percebi que não conseguiria escapar da conversa e sentei na soleira da porta. Comecei me confessando um ignorante no tema, além de agnóstico, por isso, seria difícil falar sobre algo que foge das explicações humanas, mas informei que o batizado da Maria Cecília era uma reunião de cristãos católicos e, para estes, existe um único Deus, que é pai de Jesus Cristo e criador deste mundo. “Criou todos nós?”, perguntou a Rumba. “Se é o criador deste mundo, criou todos nós.”, disse ironicamente a Samba. “Então o mundo está sob os olhares de um único Deus?”, perguntou a Salsa. Eu disse que, para os cristãos, sim, mas argumentei que existem outras religiões, cujos fiéis acreditam em Deuses, ou num outro Deus.
A coisa começou a ficar complicada, quando a Valsa resolveu analisar a situação. “Hitler era cristão; São Francisco de Assis era cristão; isso quer dizer que o Deus de Hitler é o mesmo Deus de São Francisco?”, perguntou a cadelinha.  Respondi que, teoricamente, sim. “Mas o Deus do vereador Carlos Apolinário não pode ser o mesmo Deus da irmã Dulce, por exemplo, embora os dois sejam cristãos. O Apolinário acabou de propor a criação do ‘Dia do Orgulho Heterossexual’, para preservar a família e os bons costumes, demonstrando claramente todo seu preconceito, coisa que a irmã Dulce jamais teve. Como é possível os dois acreditarem no mesmo Deus?”, filosofou Lambada. Fiz uma tentativa de falar, mas fui interrompido por Maracatu. “Frei Tito e Médici eram cristãos. Um foi torturado quando o país era comandado pelo outro. Seguiam o mesmo Deus?”, perguntou o saci.
Após essa pergunta, fez-se silêncio e todos refletiram. “Cada um de nós tem seu próprio Deus.”, definiu Lambada, interrompendo o silêncio. “Ou... cada um de nós é Deus.”, concluiu Tom, sorrindo e enchendo o peito para iniciar um discurso. Interferi citando uma poesia de Roberto Godinho, um escritor são-roquense, que fala sobre a ansiedade de um homem no dia em que conheceria Deus e sua surpresa quando lhe mostraram um espelho.
Não chegamos à conclusão alguma, mas avançamos um pouco num tema que deverá estar presente em outras de nossas conversas, que também não serão conclusivas.
Encerramos aquele papo, mas percebi que as cadelas, os sacis e o gato ficaram um pouco frustrados, porque, tarde da noite, da janela do meu quarto, ouvi trechos do debate que eles ainda travavam na porta do quartinho, até que a Valsa, entre um bocejo e outro, questionou Maracatu e Lambada. “Por que vocês não perguntaram pra Maria Cecília? Acho que só ela tem essa resposta.”
O Tom, que estava quase dormindo ao pé da minha cama, despertou. “Sabe que a Valsa tem razão!”, disse o gato, arrematando, um pouco decepcionado: “Pena que nós nunca vamos saber, porque quando a Maria Cecília estiver falando já terá recebido todas as influências do meio e não se lembrará desta e de muitas outras coisas interessantes.” Colocou a pata esquerda sobre os olhos, para evitar a luz da TV, e voltou a dormir.

João Bid

sexta-feira, 22 de julho de 2011

E VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE

A Lisa vive um momento especial em sua vida. A “CiadeEros”, grupo de teatro da cidade de São Roque, formado por adolescentes e dirigido por ela, tem se destacado na região com a peça “Era uma vez”, pois essa montagem ganhou o direito de representar a cidade de São Roque no Mapa Cultural deste ano; foi selecionada para se apresentar no Festival de Teatro Livre, organizado pela Associação Teatral de Sorocaba; e acabou de ser selecionada para participar do Festival de Teatro do Sesi de Sorocaba. Além desse fato, Lisa anda muito orgulhosa com os prêmios que o ator mairinquense Lélis Andrade vem recebendo nos festivais que participa, atuando no grupo de teatro da Faculdade de Artes Cênicas de Salto, pois ela acabou sendo decisiva para que Lélis escolhesse, acertadamente, a profissão de ator. 
Aliás, todos lá de casa estão em festa e muito orgulhosos com as performances da “CiadeEros” e com as conquistas do Lélis. Esses meninos e meninas são os filhos que não tivemos biologicamente e vivem em casa, portanto, as cadelas, os sacis e o Tom também os consideram da família.
Fiz esse preâmbulo pra contar que a CiadeEros trocou todo o figurino da peça por um novinho e belíssimo, desenhado por Marco Lessa e confeccionado pela Chiquita, minha sogra, e o figurino antigo está guardado no quartinho do fundo, lá em casa. Como já disse pra vocês, os sacis contam detalhadamente pras cadelas e pro gato tudo que assistem e de uma forma que eles acabam tendo acesso às imagens e som dos espetáculos. Fizeram isso com o espetáculo “Era uma vez” e a turma ficou muito emocionada com a história de João e Maria Ninguém, alguns até choraram com o fim da história; riram muito com a Fulana, a Beltrana e a Sicrana, bem como, com as duas velhinhas; ficaram com raiva do Tenente; e odiaram o senhor Poder. 
Esta semana, estávamos arrumando a cozinha do jantar, quando o casal de sacis, Maracatu e Lambada, nos informou: “Vocês estão convidados a, em dez minutos, assistirem o espetáculo teatral ‘E viveram felizes para sempre’, encenado pela ‘CiadeAfrodite’, na passarela do quintal.”
Deixamos a cozinha para o outro dia e fomos para o quintal. 
As cadeiras foram colocadas no gramado dos dois lados da passarela, direcionadas para o centro, na circunferência maior do piso. Platéia lotada. Estavam todos os gatos da vizinhança, curupiras, sacis, iaras e boitatás. Dois lugares reservados para nós.
A Lambada dirigiu a peça e Maracatu fez a sonoplastia e a iluminação. Importante ressaltar que os sons vinham de algum lugar, que não identificamos e que Maracatu fez questão de não contar, e a iluminação era natural. Aquela era noite de lua cheia e Maracatu, também de uma forma que não nos explicou, exercia total domínio sobre as nuvens e fazia com que estas passassem em frente à lua conforme a necessidade de mais ou menos luz e, vez ou outra, uma ou outra estrela brilhava com maior ou menor intensidade. A iluminação que a Dani Oncala fez no “Era uma vez” estava belíssima, mas a de Maracatu...
A história da peça também se passava num país fantástico, porém, nada de autoritarismo como no “Era uma vez”. Nesse país existia liberdade; direitos e deveres; não existiam políticos corruptos; as críticas eram debatidas e os elogios não existiam, porque todos tinham consciência de que fazer o certo não era nada mais do que a obrigação dos que estavam no poder; não existiam os preconceitos; enfim; todos eram tratados com igualdade. De repente, entra o Tom com o figurino do João Ninguém: bermuda, uma camisa simples e de chapéu. “Esse gato não tem jeito. Tinha que ser o protagonista.”, sussurrou a Lisa no meu ouvido. No mesmo instante, a luz de uma estrela fica mais intensa do outro lado da passarela, onde aparece, com o figurino de Maria Ninguém, a Valsa. “E a Valsa ia deixar barato?”, perguntei, também sussurrando para a Lisa. E a peça seguiu, até que entra a Rumba, fazendo três papéis: Fulana, Sicrana e Beltrana. Nessa cena, as Três Marias, as estrelas, trabalharam de verdade, porque ficavam acendendo e apagando conforme o texto fluía na boca de Rumba, que pulava de foco em foco para fazer, com competência, os três papéis. Quase morremos de rir com a Rumba, mas ainda sobrou vida para rirmos muito com as duas velhinhas: Samba e Salsa. A Samba oferecia chá e a Salsa falava: “Aceito um bocadinho.” Pra ficar mais real, a Salsa fez uma velhinha com catarata, que não conseguia acompanhar os passos da Samba. Ia sempre para a direção oposta. Percebemos que a peça caminhava para o fim, quando, ao término da cena das mocinhas, interpretadas por Rumba, Samba e Salsa, as nuvens se colocaram em volta da lua e formou-se um foco na entrada do quartinho, de onde saiu Tom, vestido de Smoking, usando gel nos pelos, e a seu lado, Valsa, de véu e grinalda. Era o casamento de João e Maria Ninguém. Logo atrás do casal, vinham Samba, Salsa e Rumba, esta última jogando arroz, e o fundo musical era a música composta por Edson D’aísa para a peça “Era uma vez”. Maracatu adorou a composição e não quis trocá-la. A surpresa ficou por conta de uma revoada de maritacas, que saiu do abacateiro do vizinho em direção da torre de celular, que fica em frente à nossa casa. O cortejo passou pela passarela sob os aplausos de todos. “E assim, viveram felizes para sempre”.
Essa peça vocês não vão poder assistir, porque a CiadeAfrodite já informou que a apresentação foi única, já que a própria arte de encenar é única, além do fato de que a iluminação estaria prejudicada, pois não se sabe quando a lua estará na mesma posição e cheia outra vez; mas a peça “Era uma vez” continua em cartaz e é necessária para todos nós. Assistam.

João Bid

segunda-feira, 13 de junho de 2011

E FINALMENTE A RUMBA FALOU

Numa dessas noites muito frias, apesar de sabermos que as meninas estão muito bem instaladas no quartinho delas, ficamos sensibilizados e convidamos todo mundo pra assistir TV. A Salsa, mesmo tendo perdido a visão, era a mais animada, pois ela curte muito ficar exercitando sua imaginação. 
Não me lembro qual era o programa, mas lembro que tentei mudar de canal quando anunciaram uma entrevista com Jair Bolsonaro e fui impedido, porque todos, afora eu e Lisa, estavam curiosos para conhecer a cara do autor de inúmeras manifestações homofóbicas.
Bastou a primeira resposta daquela coisa, para ouvirmos uma voz infantil, porém, numa linguagem clara, com fim de frase bem definido, sílabas bem articuladas e um timbre muito gostoso. “Esse cara é um babaca”. Era a Rumba, finalmente falando. Antes de comemorar o momento, tive tempo de observar que essa voz, assim que madura, chegará muito próxima da voz de Cris Delano, para mim, a melhor cantora brasileira (procurem ouvir). 
Todos nós ficamos muito felizes e comemoramos. Lambada estava toda orgulhosa por ter sido a responsável pelos ensinamentos transmitidos à Rumba e mais orgulhosa ainda, pela lucidez da primeira manifestação daquela nossa menininha. Pra variar, a Lisa chorou. Valsa quis começar uma conversa com a Rumba, mas foi interrompida pela Salsa, que foi a única a ouvir a segunda resposta do político. “Escroto, fascista e enrustido. Gente desse tipo deveria ser proibida de viver em sociedade.” Voltamos as atenções para a TV e na terceira resposta, que vinha contida de um ódio profundo pelos homossexuais, o Tom apertou a tecla off do controle remoto. “Não precisamos continuar ouvindo esse idiota falar.”, afirmou o gato. 
Samba ainda estava brigando com o Tom, porque achava que deveríamos ouvir toda a entrevista daquele monstro, mas Lambada, pedindo licença, perguntou: “Posso aproveitar este momento pra contar uma história?”. Samba cedeu e todos silenciaram para ouvir a saci.
Lambada iniciou contando que, há muito tempo, num recanto da Floresta Amazônica, nasceu um saci com duas pernas. “Que bacana!”, interferiu a Valsa. “Não foi dessa forma que a comunidade recebeu a notícia.”, rebateu Maracatu, fazendo sinal para que Valsa deixasse a Lambada continuar a história. Lambada continuou, relatando que muitos sacis olhavam para aquele ser com repugnância; outros ficaram penalizados; e alguns poucos, iniciaram um movimento para isolar a saci que dera a luz àquele ser estranho. A mãe demonstrava certo desespero com a situação, pois sentia que, mesmo não externando esse sentimento, todos queriam explicações, mas ela não as tinha e sofria com a possibilidade de ver seu filho sendo vítima de preconceito no futuro.
O sacizinho cresceu um pouco e, nos seus primeiros passos, tropeçava nas pernas e caía, invariavelmente. “Tadinho!”, sussurrou Samba. Lambada continuou contando que os outros sacizinhos riam muito e começavam a isolá-lo de suas brincadeiras. Passados mais alguns anos, o saci, já se equilibrando, percebeu que, com duas pernas, poderia ser muito mais rápido que todos os sacis da comunidade e aí passou a ser vítima da inveja de alguns, já que ele era o mais solicitado para as tarefas mais difíceis. Essa inveja fortaleceu o preconceito de outros, que, veladamente, se juntaram contra aquele saci. “O impressionante”, dizia Lambada, “é que quanto mais o ódio por ele crescia, mais ele amava sua comunidade; maior era sua dedicação à ela.” 
Continuando, contou que os anos foram mostrando para a comunidade que a diferença daquele saci não era apenas na aparência, mas também, na capacidade de amar. Todos diziam que ele não era apenas mais veloz que os outros, mas também amava mais que todos. Ele dizia que não amava mais, nem menos, mas simplesmente de forma diferente. Por fim, depois de ter adquirido o respeito de todos e de ter se tornado um dos líderes, o saci foi embora sem avisar ninguém, deixando a comunidade saudosa, mas feliz por ter convivido muitos anos com aquele ser tão especial. Acontece que o saci resolveu ir embora de sua comunidade quando descobriu que havia nascido com outro defeito. No seu peito batiam dois corações.
“Dizem que hoje ele anda por todas as florestas e cidades deste país espalhando seu amor e que quando sentimos súbitas alegrias sem motivos aparentes, é ele quem está passando em nossa frente, mas, de tão rápido, nem conseguimos vê-lo.”, finalizou Lambada.
Confesso que foi difícil conter as lágrimas e ficamos todos sem voz, com exceção de Rumba, que por estar em fase final dos estudos, acostumou-se a colocar suas dúvidas. “Será que os homossexuais também têm dois corações, por isso, podem amar mais?”, perguntou. “Não! Eles não amam mais, nem menos, apenas de forma diferente.”, respondeu a Salsa. “E aquele deputado não entendeu isso ainda?”, replicou a cadelinha. “Um dia ele vai entender. Um dia todos vão entender”, profetizou Maracatu. 

João Bid

quinta-feira, 26 de maio de 2011

SENSO ESTÉTICO É UMA QUESTÃO CULTURAL

Hoje temos nossa varanda de volta, porém, logo que a Rumba chegou e se apaixonou pela espreguiçadeira, liberamos esse espaço nobre da casa para ela e as outras cadelas. Confesso que foi difícil retomá-la, porque, além da Rumba, a Salsa estava feliz com o cantinho que já havia tomado, mas não dava mais pra ficar ouvindo nossas visitas cobrarem a reintegração de posse daquele espaço. 
Nesse breve espaço de tempo, cansamos de acordar e encontrar as cadelas, os sacis e o gato espalhados pela varanda, batendo longos papos. Participamos de muitos desses papos, mas um deles ficou na minha cabeça. Foi num domingo, dia de céu aberto, com as duas janelinhas da varanda voltadas para leste recebendo o sol da manhã e a brisa passeando de sul para norte no espaço. Maracatu e Lambada enrolados na rede; Samba sentada em frente à mesinha, que fica encostada na parede, mas no centro da varanda; Rumba, obviamente, na espreguiçadeira; Salsa embaixo dela; e o Tom em cima da grade que separa a varanda da frente da casa. Realmente uma manhã deliciosa para um bom papo. Eu e Lisa abrimos a janela que dá para a varanda e nos acomodamos ali, após ouvirmos o Maracatu dizer: “Lembra aquela peça teatral do Millôr Fernandes ‘Um elefante no caos’, que se passava num prédio de apartamentos e seus moradores conviviam com um incêndio que nunca acabava. O bombeiro, na peça, já era amigo de todos e estava sempre tomando café no apartamento da Maria, a protagonista da história.” “Vocês estão falando de teatro? Tô dentro.”, disse a Lisa. 
“Não. Eu estava falando da praça do nosso bairro, que está em reforma faz mais de um ano e não dá pra imaginar quando ficará pronta, pela morosidade da obra, quando o Maracatu fez essa analogia.”, contou Lambada, que completou, “Eu e Maracatu passamos todas as madrugadas ali e perece que está sempre do mesmo jeito.” “Que nem o incêndio no prédio da peça do Millôr. Não acabava nunca.”, falou Maracatu, em meio a risos.
“Vocês riem, mas deveriam chorar. Não é legal viver numa cidade que num dia programa luta livre na festa do padroeiro, no outro, realiza um rodeio sem nenhuma tradição local, nem mesmo um peão Mairinque tem, e, agora, com a reforma de uma praça que nunca termina.”, disse o Tom, demonstrando certa mágoa na voz. “A gente, que nasceu aqui, não fica feliz com isso.”, completou o gato. “Sem falar nos outros absurdos que acontecem aqui.”, disse a Valsa, que é sãorroquense de nascimento. “Se é como o Maracatu e a Lambada contam pra gente, a coisa tá feia.”, falou a Salsa.
Samba, que nessa altura da conversa se mostrava indignada, me questionou: “Sem querer duvidar do Maracatu e da Lambada, me responda. É verdade que a porta de entrada do Teatro Municipal de Mairinque fica atrás de uma roda-gigante?” Expliquei que isso ocorre somente durante a festa de São José, quando, por falta de espaço, montam uma roda-gigante, de fato, na porta do teatro. “Que absurdo!”, interrompeu a cadela, que fez mais uma questão. “E a porta de entrada da escola de arte? É verdade que fica atrás de um carrinho de hot-dog?”. Nesse momento, a Lisa não aguentou e deixou escapar uma risada, mas engoliu-a imediatamente após receber olhares de censura, pois todos estavam penalizados com a tristeza da Samba e do Tom. Abaixei a cabeça e fui obrigado a acenar positivamente, porque realmente a porta de entrada da escola de artes fica atrás de um carrinho de hot-dog. Samba fechou a boca, se virou e saiu da varanda, seguindo direto para o quartinho, muito envergonhada e chateada. Tom pulou da grade para cima do telhado e sumiu. Eu, que sou nascido em Mairinque e adoro a cidade, saí da janela e fui para o computador. Do gramado, onde estava iniciando uma brincadeira com a Rumba, Valsa tentou minimizar a situação constrangedora. “Mas, em compensação, os camelôs não estão mais nas calçadas da praça do nosso bairro!”, vibrou a cadela. “Pois é! Agora eles estão instalados bem na entrada da Estação, a primeira construção em concreto armado do país.”. ironizou Maracatu. “Instalaram os camelôs numas barracas metálicas de um mau gosto ímpar. Hoje, a nossa estação está escondida pelas barracas.”, lembrou Lambada. “Pelo amor de deus! Isso tá parecendo ensaio fotográfico de Sebastião Salgado.”, gritou Salsa, encerrando conversa.
À noite, eu e Lisa avaliávamos que a gente anda pela cidade e acaba se acostumando com a paisagem, não notando detalhes que realmente deveriam chocar, como chocaram nossos sacis, nossas cadelas e o gato. Lisa argumentava que tudo é uma questão cultural e exemplificou com a televisão brasileira, citando a TV do Silvio Santos, que tem uma programação de mau gosto a toda prova, porque o bom gosto não faz parte da cultura de seu proprietário. Lamentamos então, o azar do povo mairinquense, que elegeu políticos que não incluíram em suas culturas o senso estético apurado. O Tom, que estava tomando seu último gole de leite antes de dormir, fechou a conversa fazendo uma maldade. “Bem diferente do Maracatu e da Salsa, que numa conversa de alguns minutos citaram Millôr Fernandes e Sebastião Salgado... É! Os políticos poderiam pelo menos dar ouvido aos animais e aos seres de nosso folclore, já que nunca ouvem seu povo.”

João Bid

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O SUPER-HERÓI CAPITOM

Chegando à tarde em casa, eu e Lisa, conversávamos no carro sobre a certeza de termos de fazer malabarismos para escapar das investidas das cadelas ao abrirmos o portão. A Rumba, que está no auge de sua infância, é a que nos ataca com mais veemência, em busca de carinho, atenção, enfim, aquelas coisas de criança. Temos até uma musiquinha que cantamos em uníssono nesses momentos. É uma canção que está na trilha sonora do filme “Bagda Café” e se encaixa direitinho nesse evento em que se tornou nosso encontro com as cadelas, depois de um dia inteiro sem vê-las.

Nesse dia, porém, uma surpresa: nenhuma delas no portão. Trocamos um olhar e rimos, porque era uma questão de poucos segundos para estarem todas na grade da frente, pulando e latindo, ansiosas por nos atacarem. Abrimos o portão e nada. A partir daí, nossos olhares passaram a ser de preocupação.
Nem fomos para a porta da sala. Pegamos o corredor da direita e, quando íamos começar a correr para o fundo da casa, ouvimos a voz do Tom: “Sentido!”. Já no fim do corredor, pudemos ver as quatro cadelas alinhadas na grama e o Tom, o gato, usando o quepe do tenente da peça “Era uma vez”, que o grupo de teatro da Lisa está encenando, no centro da passarela de concreto, dando os comandos. “Direita!”, gritou o gato. Nesse instante, a Rumba percebeu nossa presença e olhou para a nossa direção. Estávamos à esquerda. O Tom gritou ainda mais alto: “Eu falei direita.” A Valsa também nos viu e tentou sair da formação. Acabou tomando uma dura. “Soldado Valsa, fique no seu lugar. Ainda não dispensei o ‘pelotom’.”, falou firme o gato.
A Salsa, cega que está, era um caso à parte, pois estava sempre desalinhada, mas o Tom, nesse caso, falava com mais calma. “Salsa, vem um pouco mais pra frente. Vire um pouco pra esquerda pra ficar de frente pra mim.”, dizia o gato, com voz mais baixa e paciente.
Em cima do telhado da casa estavam Maracatu e Lambada, os sacis, que não paravam de rir.
“Você sabe o que é isso, né?”, me perguntou a Lisa, quase que sussurrando. Fiz sinal que sim e continuamos olhando. 
Acontece que a Polícia Militar se instalou em frente de casa e, dia desses, a Lisa viu o Tom saindo do Pelotão tranquilamente. Isso nos preocupou um pouco até sabermos que ele é muito bem tratado lá.
“Descansar!”, gritou o gato. “’Pelotom’! Dispensado.”, encerrou o treinamento o comandante. Samba, Valsa e Rumba dispararam em nossa direção, enquanto que o Tom ajudava a Salsa a sair da grama e se orientar para também vir até nós. O Tom se dirigiu ao quartinho para guardar o quepe, de onde deu mais uma ordem: “Meninas! Amanhã, no mesmo horário.” Maracatu e Lambada desceram do telhado e fomos todos pra varanda.
Na varanda, a Rumba, que ainda não fala, começou a latir em diversos volumes e timbres e Lambada, que será sua professora, traduzindo. “Ela quer dizer que achou muito divertida a brincadeira do Tom.”, informou a saci. “Brincadeira! Ele tá levando a sério a formação de um pelotão. Aliás, ele quer que chame de ‘pelotom’, o pelotão do Tom.”, disse a Valsa. “Acho que ele pirou, porque também inventou o ‘Capitom’, capitão Tom. Tá se sentindo um super-herói.”, falou a Samba, rindo. Salsa, mais introspectiva e pensante, opinou pelo lado filosófico e sociológico: “A busca do poder, às vezes, é feita por caminhos que desconhecemos. É preciso identificar o caminho trilhado pelo Tom, para depois combatermos a causa e trazê-lo novamente para a realidade.” Fez-se silêncio, quando entrou na varanda o alvo de nossa conversa. 
“Sente aí, Tom. Vamos bater um papo.”, convidou a Lisa. “Não. Vou dormir um pouco agora, pra ficar de guarda quando as meninas dormirem. Não podemos deixar nossa casa desprotegida.”, respondeu o gato, que entrou e, antes de deitar, assobiou a primeira parte de “Il Silenzio”. 
“Não se preocupem. O Tom está sofrendo a influência das novas amizades com os soldados da Polícia Militar aí da frente. Logo-logo ele volta a ser o nosso Tom.”, disse Maracatu. 
Pra mudar de assunto, perguntei ao casal de sacis o que eles têm visto de arte. Maracatu, meio desanimado, disse que viu algumas coisas interessantes pela região e assistiu a atração de fechamento da Festa de São José, o Padroeiro de Mairinque, só para ver se era verdade o que estavam anunciando, que para ele era um absurdo. Quisemos saber o que era e Lambada contou que eles foram no último dia da festa e estava programada, como atração principal, um festival de Luta Livre. “Acho que vocês não viram direito, porque não é possível terem programado ‘luta livre’ para o último dia de uma festa religiosa.”, falei espantado. “Fico imaginando o padre anunciando: ‘Logo após a missa, teremos um sensacional festival de Luta Livre na praça’”, falou a Valsa,rindo muito. “O pior é que, como choveu, a luta foi transferida para o palco do Teatro Municipal.”, acrescentou Maracatu. “Isso é brincadeira... me recuso a acreditar... no Teatro Municipal?!”, disse a Lisa, quase se afogando com um pedaço de chocolate, mas Lambada foi enfática: “Também não acreditamos, porém, foi o que vimos.” “Vocês contaram isso pro Tom?”, perguntei. “Contaram, com detalhes.”, informou a Samba. “Então, está explicado.”, concluiu a sábia Salsa.
Passados três dias, o Tom passou o dia dormindo e à tarde não incomodou as meninas. Todos perceberam a mudança, mas não quiseram questionar com medo que o gato retomasse o “Pelotom”. À noite, puxei conversa com ele e não resisti. Perguntei o que tinha ocorrido. O Tom me explicou que quando os sacis contaram a história da luta livre na Festa de São José, ele ficou apavorado ao imaginar que na Festa de São João Batista, que seria a próxima, a programação poderia trazer o tal do Vale Tudo e o pior poderia ocorrer na Festa de São Benedito, que é no nosso bairro. “Aí eu pirei e comecei imaginar que poderia acontecer um festival de seres estranhos, desses homofóbicos, ou racistas, ou ainda aqueles que gostam de maltratar animais em rodeios, e pensei em usar os conhecimentos adquiridos com meus amigos da PM pra proteger nossa casa, mas acho que já passou.”, me contou o gato. Perguntei o que aconteceu pra ele mudar de opinião e ele me disse que assim que soube que a Prefeitura foi quem programou a tal Luta Livre, ficou mais tranqüilo, porque sabia que os cristãos ficariam mais atentos e não permitiriam a repetição desse absurdo. 
“Digo adeus ao Capitom, então?”, perguntei sinicamente. “Por ora, sim.”, respondeu ele.


João Bid

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A FAMÍLIA AUMENTOU

“Vocês não querem ficar com este cachorrinho? Ele foi abandonado na rua.”, perguntou a Yasmim, uma menina de nove anos, que mora em frente à nossa casa e que estava acompanhada de suas coleguinhas, também residentes na vizinhança. A Lisa respondeu que não podia, porque já tínhamos três cadelas e um gato, e pediu que elas procurassem alguém que pudesse adotá-lo. Era final de tarde e as meninas saíram pelo bairro com o cachorrinho no colo.

A Lisa virou-se pra mim e disse: “Você sabe pra quem vai sobrar, não sabe?” Eu disse que sim, mas botei fé no poder de convencimento das meninas.
Valsa, ao ver as meninas chegarem com o cachorro, veio para perto do portão e, assim que elas se foram, toda interessada, sugeriu: “Peguem a cadelinha pra gente. Ela é tão bonitinha!”. “Não temos condições, Valsa. Além do trabalho, acho que nem espaço teria. E é cachorrinho, não cadelinha”, respondi, sem tanta segurança assim. “Eu ajudo a cuidar. E é cadelinha, não cachorrinho.”, respondeu ela.
Mais ou menos onze da noite, ouvimos um choro agudo e doído que vinha da rua, o que bastou pra Lisa sair e ver o que estava acontecendo. Em minutos, estava a Lisa de volta, chorando e com o cachorrinho no colo. Combinamos que cuidaríamos dele até conseguirmos alguém bem bacana pra adotá-lo. Ele ficou dentro de casa naquela noite e acho que dá pra todo mundo imaginar como a sala se apresentou no outro dia.
De manhã, abrimos a janela e as cadelas já estavam reunidas na garagem no maior alvoroço, porque haviam percebido a novidade. Samba perguntou se iríamos ficar com a cadelinha, ao que respondi que ficaríamos até conseguir alguém que quisesse. “Posso ficar brincando com ela, então?”, perguntou a Valsa, toda empolgada. “Pode, Valsa, mas, pelo que vi, é um cachorrinho.”, disse a Lisa. 
O primeiro interessado no cachorro desistiu quando descobriu que era, na verdade, uma cadelinha. “Eu falei!”, disse a Valsa, que estava deitada na grama, esperando o desfecho da conversa pra continuar brincando com a, agora, cadelinha. 
Divulgamos na internet e um amigo, vendo nosso sufoco, disse que ficaria com a cadela, mas precisaria de uns quinze dias para se estruturar.
Resumindo, passados dois dias, a cadelinha preta, com patas e peito brancos, já havia conquistado todo mundo em casa e foi batizada com o nome de Rumba. 
Neste momento, ainda estamos nos adaptando, pois a Rumba tem em torno de três a quatro meses e necessita de cuidados especiais. Quem já se adaptou foi a Valsa e ajuda bastante, brincando o dia inteiro com a Rumba.
Maracatu e Lambada, que não se manifestaram durante esse tempo, pois, decerto, já sabiam sobre o desfecho da história, ficarão responsáveis pelo ensino de comunicação com os humanos, mas pedimos para eles não terem pressa, já que é bacana que a Rumba curta bastante sua infância para depois se dedicar aos estudos. Por enquanto, a Valsa vai fazendo a ponte entre nós e a Rumba. 
O Tom ficou meio puto nos primeiros dias, pois era obrigado a dividir o interior da casa com a Rumba, mas agora está animado, mesmo porque, as meninas reivindicaram e a Rumba já está com elas do lado de fora. “Por um instante me senti inseguro, pensando que poderia perder meu reinado nesta casa.”, disse o gato, já com um sorriso no canto da boca. Ainda não retomamos a varanda, mas temos confiança que isso ocorrerá em breve.
Acho que não contei que todos os nossos animais têm dois nomes: Samba de Lourdes, Salsa Filomena, Valsa Maria e Tom Ravioli, este último, em homenagem ao nosso amigo Tom Ravazolli. Então, faltava o segundo nome da Rumba, o que se resolveu durante o Fespima – Festival de Performance Individual, organizado pelo Professor Giovani em Mairinque. Trouxemos o Roberto, ator paulistano, para se apresentar no último dia do festival e, de sábado pra domingo, ele ficou em casa, quando conheceu nossa família inteira e observou que a Rumba tem olhos tristes. A partir daí, a Rumba ganhava um segundo nome. Ficou Rumba Carolina, em homenagem à moça da janela, criada por Chico Buarque. Chique, não?
Enfim, a família aumentou e Rumba, que nem se lembra mais do abandono de que foi vítima, já não guarda tanta dor, a dor de todo este mundo, e não quer saber de ficar na janela, corre por todo o nosso quintal, carregando seu olhar triste, mas em busca de uma felicidade, que já se percebe começa a tomar conta da cadelinha. 

João Bid

quinta-feira, 3 de março de 2011

QUANTA COISA BOA!

“Posso me considerar uma privilegiada, pois a arte tem me proporcionado muitos prazeres. Assisti muita coisa boa nos últimos tempos e sei que foram boas, porque em todas essas oportunidades saí com a sensação de trazê-las pra casa e ir saboreando devagarinho suas mensagens, seus símbolos, suas performances artísticas etc. Sem exceção, ri e chorei muito em todos esses espetáculos, em sua grande maioria, teatrais.”, disse a sempre sensível Lambada, a saci fêmea, que com Maracatu, seu companheiro, não perdeu um espetáculo sequer dos que eu e a Lisa escolhemos para assistir.
Estávamos reunidos no quintal, numa dessas noites quentes, olhando pro céu e falando de arte. Samba ao lado da cadeira da Lisa, Salsa ao lado da minha, Valsa correndo pelo gramado atrás de vagalumes e o casal de sacis em cima do telhado do quartinho, para ficar mais próximo dos galhos do abacateiro que cresce no vizinho. O Tom, como todo gato, um ser extremamente noturno, estava pelos quintais da vizinhança. Vez ou outra, escutávamos uns miados mais enfezados e altos, também característicos do Tom.
Os sacis sempre contam os espetáculos para as cadelas e para o gato com todos os detalhes, porque desenvolveram um método de contar as coisas de forma que os animais acabam enxergando o que está sendo relatado. Maracatu e Lambada pedem para as cadelas e para o Tom fecharem os olhos e entram em suas mentes com as imagens e sons que viram e ouviram. Não me peçam pra dar detalhes desse método, pois nem consigo imaginar o que seria isso. Eu e Lisa pedimos pra que os sacis nos contassem suas aventuras dessa forma, mas nos disseram que só dá certo com animais. 
Mas... conversávamos sobre todos esses espetáculos e brincávamos de Oscar, tentando escolher os melhores, porém, tarefa impossível. A arte nos toca de maneiras diferentes e por diferentes motivos. Resolvemos então, cada um escolher um espetáculo e falar sobre algo que o tocou, pois havia unanimidade no que diz respeito ao prazer sentido por todos, em todos eles.
Maracatu não abriu mão de começar escolhendo a linguagem popular do “Nativos Terra Rasgada”, grupo de teatro de rua, que está apresentando “Pindorama, a saga de um Cristo”. “Achei fantástica a versão bem humorada e cheia de críticas que o grupo apresentou sobre a vinda de Cristo para o Brasil.”, definiu o saci. “Quero entrar nessa brincadeira também!”, gritou Tom, em cima do muro, saindo do meio das folhas do abacateiro. Rapidamente, explicamos nossa proposta e Samba interrompeu pra falar sobre sua escolha. “Para mim, o show ‘Matheus Convida’ foi emocionante, pois, além das canções apresentadas, achei muito bacana a interferência da ‘Cia de Eros’, interpretando uma poesia do Matheus.”, lembrou a cadela. “Na verdade, a ‘Cia de Eros’ deu um banho na peça ‘Era uma vez’, com interpretações surpreendentes e segurando com maestria um texto bastante pesado para os adolescentes, que são.”, proclamou Tom, cá entre nós, deixando suspeitas de que escolheu essa peça porque estava interessado em garantir um espaço na cama da Lisa, já que ela é a diretora do espetáculo; mas, enfim, defendeu bem seu ponto de vista. Lambada se encantou com a peça “Desterro”, interpretada pelo grupo “Coletivo Cê”. “Achei muito bem construído o texto, grandes atores e atrizes, uma direção perfeita. Realmente me emocionei demais. Talvez o fato deles terem ocupado os espaços do casarão da Capela Santo Antônio, tenha contribuído para minha escolha, mas sei que fiquei maravilhada.”, definiu a saci. “Eu fico com a ‘Trama Cultural’. Gosto de dançar aqueles rocks que o Mário Sérgio canta, lembrando Raul, e achei lindo aquele menino dançando enquanto o Rodolfo dizia uma poesia.”, disse a Valsa, que havia desistido dos vagalumes e estava em cima da minha toalha de banho, que ela havia pego na janela do quarto.
Eu e Lisa tínhamos decidido não opinar, pois seria muito difícil para nós, já que gostamos de todos, e não queríamos arriscar sermos injustos com nossos sentimentos. Mas, faltava a Salsa, que ficou o tempo todo voltada para o clarão da lua, sem interferir em nenhum dos depoimentos. “Falta você Salsa!”, pediu o Tom. “Parece que você não está gostando da brincadeira!”, questionou Valsa. “Muito pelo contrário. Eu estava divagando pelos espetáculos enquanto vocês falavam.”, falou a cadela, que escolheu a peça teatral “Do jeito que você gosta.”, de Shakespeare, encenada pela “Companhia Elevador Panorâmico”. “Gostei muito de todos os espetáculos, mas fico com Shakespeare. Duas horas e meia ouvindo o relato da Lambada e me pareceu apenas um minuto de tão belas imagens que foram produzidas, um figurino lindo e interpretações inesquecíveis. Durmo sempre com aquelas imagens.”, concluiu a cadela, que cada vez mais me emociona com sua sensibilidade.
“E o show da Nana?”, perguntou Tom. Ninguém se atreveu a falar de Nana Caymmi. O silêncio se instalou para continuarmos ouvindo aquela voz e lembrando das belíssimas interpretações, que trouxemos pra casa e não merecem comentários. 

João Bid

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A PROFECIA DE TOM JOBIM

E as tragédias de janeiro se repetem. Desta vez, numa intensidade assustadora. A região serrana do Estado do Rio de Janeiro tomou conta do noticiário e todos já imaginavam que, desta vez, o Rio Tietê e a Vila Romano seriam esquecidos pela mídia, poupando os governantes de nosso Estado. Mas São Paulo não deixou barato e, no dia 23, expôs todo esse festival de incompetência e descaso que já conhecemos.
Continuava chovendo e eu e Lisa concluíamos essa conversa, quando Tom, o gato, parou de correr atrás de sua bolinha para lamentar o fato. “Lamentável saber que as mortes poderiam ser evitadas.”, falou o gato, que assistia a bolinha deslizar e parar somente após quase derrubar uma galinha de louça, que mantemos no chão, embaixo do barzinho, “como essa galinha de louça, que por sorte não quebrou.”, concluiu. “Cada vez que você começa a correr atrás de suas bolinhas, nós devemos retirar os objetos quebráveis do chão, não é?”, perguntou a Lisa. “Simples assim. Se a população fosse retirada do local após o sinal de alerta, as mortes seriam evitadas. Além disso, se as autoridades planejassem, fiscalizassem e não permitissem as construções em lugares irregulares, a tragédia seria menor, sem dúvida.”, sentenciou o gato.
Nesse momento chegam Maracatu e Lambada e se acomodam na janela da varanda voltados para o lado de dentro para participar da conversa.
Como as cadelas morrem de medo de chuva, perguntamos ao casal de sacis se as meninas estavam no quartinho. Lambada disse que sim e relatou que a Samba, a mais medrosa, estava no canto, embaixo de uma das prateleiras, e a Valsa, a mais nova, também se encolhera embaixo da namoradeira. “Só a Salsa se mantém calma, reagindo aos sustos que toma com os trovões, mas calma.”, informou Maracatu. Voltamos a falar dos problemas ocasionados pela chuva e a Lisa se lembrou da ironia da natureza ao destruir o sítio de Tom Jobim, compositor de “Águas de Março”. “Meu xará poderia ser chamado de profeta.”, disse nosso Tom, o gato, que cantou, afinadíssimo, uns trechos da música: “É pau, é pedra, é o fim do caminho... É a noite, é a morte... É o tombo da ribanceira... É o vento ventando, é o fim da ladeira... É a chuva chovendo, é conversa ribeira... É o projeto da casa... é a lama, é a lama... É um resto de mato, na luz da manhã... São as águas de março fechando o verão. É a promessa de vida no teu coração...”. Lambada aplaudiu e reforçou: “Vimos tudo isso lá: o tombo da ribanceira, a morte, a chuva chovendo, a lama, a lama e a lama.” “Tom Jobim era um ser humano especial. Entendia e respeitava a natureza; tinha uma relação estreita com as histórias e lendas da floresta; conhecia o folclore nacional. Coisas tão simples, mas que o tornaram imenso e imprescindível.”, discursou Maracatu.
Tentei comentar a manifestação de Maracatu, mas minha voz estava embargada. A Lisa, que ultimamente chora até em leitura de teses de teatro, já estava com os olhos tomados de lágrimas. Tom, nosso gato, percebeu o clima e sugeriu: “Vamos ouvir meu xará, pois agora nada podemos fazer, se não, esperar que toda essa tragédia traga um pouco de consciência para quem se propõe a governar as cidades, os estados e o país.” Saiu correndo, foi até a estante e trouxe, empurrando no chão, como faz com suas bolinhas, o disco “Passarim”. “Coloca a música ‘Brasil Nativo’. O xará faz um passeio pelas coisas do país que ele tanto amava. Acho que essa música pode contribuir com a consciência das pessoas”.
Peguei o disco e coloquei a música que ele pediu. A chuva havia parado e as cadelas chegaram na porta da varanda. Ficamos todos ouvindo e sentindo a grandiosidade deste país. Tom Jobim só não cita minhas cadelas, meu gato e meus sacis, mas cita Guará, Sussuarana e Boitatá: caninos, felinos e seres folclóricos bem brasileiros.
Finalizada a música, Salsa, a cadela que ficou cega, me disse: “Você devia pedir que os leitores do seu blog também ouvissem essa música. A gente enxerga o país inteiro”.
Fica aí a sugestão da Salsa.

João Bid

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

FIM DE ANO EM NOSSA CASA

Neste final de ano não fizemos “amigo secreto” em casa. A Samba e a Valsa estavam animadas e até me perguntaram quando seria o sorteio dos nomes, mas as lembrei que não tivemos um ano muito bacana, em alguns aspectos, e eu não estava nesse pique. Sugeri que elas se juntassem à Salsa, ao Maracatu, à Lambada e ao Tom, e fizessem a brincadeira, porém, elas entenderam que seria melhor apenas nos reunirmos para os comes e bebes e um bom papo.
Eu e Lisa compramos frutas para o casal de sacis; ração diet e uns bifinhos para a Salsa (Vocês se lembram que ela é diabética, né?); ração comum e uns palitinhos de ossos para Samba e Valsa; e leite semidesnatado para o Tom, além da ração que ele mais gosta. Para nós, as coisas normais de final de ano. Montamos a mesa na varanda, quando estava escurecendo.
Ali pelas oito e meia, chegam Salsa, Samba e Valsa. As três usando fone de ouvido, que haviam colocado logo de manhã, já que os fogos, no final do ano, estouram o dia todo e ficam mais intensos à noite. Elas haviam atacado a caixa de maquiagem da “CiadeEros”, o grupo de teatro que a Lisa dirige, e, além dos cílios postiços, fizeram verdadeiras obras de arte em seus corpos. A Samba e a Salsa são brancas com algumas pintas pretas, por isso, pegaram batom vermelho e fizeram desenhos no corpo todo. “Pra te homenagear, pois você é são-paulino, não é?”, perguntou a Salsa, já sabendo a resposta. A Samba tinha uma estola desenhada em volta do pescoço e a Salsa trazia desenhos que lembravam uma pintura pós moderna no corpo. “Eu quis desenhar pra ela, mas ela fez questão de fazer sozinha.”, disse a Samba. Como a Salsa não enxerga mais, a Samba se ofereceu pra fazer a pintura, mas a Salsa, que está cada vez mais independente, quis se pintar sozinha e eu, cá entre nós, gostei demais do resultado, mas não me expressei dessa forma para a Samba não ficar com ciúmes. A Valsa era um capítulo à parte. Ela chegou toda branca de bolinhas pretas. “Meu Deus, o pancake!”, gritou a Lisa. De fato, a Valsa, que é toda cor de mel, para homenagear as irmãs adotivas, acabou com o pote de pancake do grupo da Lisa e se pintou inteira de branco, usando o que restava de rímel, para fazer as bolinhas pretas. Sem outra atitude a tomar, a Lisa riu.
No comecinho da noite, Maracatu e Lambada foram para o que restou de mata em Mairinque. “Vamos nos confraternizar com os seres da mata e voltamos antes da meia noite.”, informou a Lambada. Mais tarde nos contaram que fizeram uma grande festa com os Curupiras, Boitatás, Caiporas, além de outros sacis que habitam nossa região.
O Tom dormia na cadeira de diretor, que está na sala de TV.
Enquanto não estavam todos reunidos, eu e Lisa ficamos conversando com a Samba e com a Salsa, pois a Valsa não tirava os olhos do Papai Noel, que, depois de ligado, fica fazendo rapel. E sobe e desce. E a Valsa pulando pra tentar pegá-lo. Falamos sobre assuntos diversos e acho até que os vizinhos ouviram tudo, porque as cadelas falavam muito alto pelo fato de estarem de fone de ouvido. Era até engraçado. Eu e Lisa falando normal e elas gritando. Pedimos que elas tirassem os fones, mas se recusaram, porque, virava e mexia, estourava um rojão. E esse acabou sendo nosso principal tema: os estouros dos fogos.
“Engraçada essa atração dos humanos pelos fogos.”, disse Samba. Arrisquei um palpite e lembrei que poderia ser pelo fato de termos raízes indígenas. “Não acho graça nenhuma. Isso é coisa de adulto, porque as crianças tem medo. Acho um desrespeito com os animais, com as crianças, com os idosos, com os doentes e com imigrantes que vieram de países que vivem em guerra.”, argumentou a Salsa, que continuou filosofando, “não entendo como os humanos podem se atrair por algo que foi criado para matar.”, concluiu Salsa. “O quê?!”, perguntou a Lisa. “Pois é! As bombas são criadas para um ser humano matar outro ser humano e, mesmo assim, são admiradas por estes.”, respondeu Salsa. “Isso é muita racionalidade. Mesmo porque, o barulho é horroroso, mas as luzes são muito bonitas.”, contemporizou Samba. “Então é simples.”, disse uma voz no escuro da sala. O Tom acabará de acordar. “Como simples?”, perguntou Salsa. “Basta que os humanos queimem apenas fogos de luzes, sem aquela insanidade de explosões.”, concluiu Tom, com a cara enfiada no pote de leite. “Grande idéia Tom!”, festejou a Lisa. Em seguida, me comprometi com todos que faria de tudo para convencer o próximo prefeito de Mairinque a fazer somente queima de fogos de luzes em suas comemorações, bem como, criar campanhas educativas para que a população também entre nessa história.
Exatamente à meia noite, chega o casal de sacis e todos se abraçaram, se beijaram, desejando que as coisas continuem bacanas em nossa casa.
Samba, espontaneamente, começou a cantar a "Ave Maria", de Schubert, e eu, pra mostrar nosso ecumenismo, cantei um ponto de umbanda do tempo, que o Paulo Moraes me ensinou. Maracatu e Lambada fizeram questão de entrar no clima e cantaram uma música do violeiro Paulo Freire. Pra variar, a Valsa também quis se exibir um pouco e começou a cantar "Atirei o pau no gato", conseguindo uma reação imediata do Tom, que saiu correndo atrás dela. Rimos muito e ficamos pela madrugada falando das coisas alegres e tristes que vivemos em 2010. 
    
      João Bid