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sábado, 23 de fevereiro de 2013

CHEGA DE TRISTEZA

Faz mais ou menos sete meses que não escrevo aqui. Não por falta de assunto, já que muita coisa aconteceu nesse tempo, umas ótimas, outras muito ruins, mas a falta de ânimo me atacou depois de mais algumas perdas.
As últimas foram as de Adriano Stuart e Magro Waghabi. Adriano adorava o vocal do Catavento, desde os tempos de Kiko e Chico. Ele dirigia o programa “Som Brasil”, da Globo,  na década de 90, e nos levou diversas vezes para nos apresentarmos lá. Era nosso grande amigo, com quem passamos muitas noites em botecos paulistanos. Magro, era do MPB4, grupo vocal que serviu como inspiração para o início da carreira do Catavento, e seu principal arranjador vocal durante mais de 40 anos. Uma vez, no fim da apresentação do show “Adonirando”, do Catavento, no Mistura Fina, um espaço nobre do Rio de Janeiro, vi o Magro na plateia, fui ao seu encontro e perguntei o que ele estava fazendo ali. “Sou fã de vocês.”, disse-me ele. Imediatamente falei que iria buscar um CD para presenteá-lo, mas ele disse que havia comprado, por isso estava ali: “...queria conferir ao vivo o que ouvi no CD”. Foi uma convivência de raríssimos encontros pessoais, mas de constantes contatos virtuais. Ele me deixou a impressão de ter ido antes do combinado, porque estava sempre agitado e toda vez que conversávamos falava-me sobre um novo projeto.
Por último, minha mãe. Para ela, escrevi algo na internet, que reproduzo aqui: O abacateiro do vizinho nasceu muito próximo do vértice que une quatro vizinhos e está completamente carregado. Ontem, a Lisa observou que o abacateiro é muito generoso, porque seus galhos avançam os muros e ele distribui igualitariamente seus frutos entre os quatro vizinhos. Minha mãe era assim. Passou sua vida distribuindo seus frutos entre os quatro filhos que teve. Hoje, olhei para o abacateiro e pensei que a quantidade de abacates do lado da nossa casa era menor que a quantidade que estava para o vizinho do lado, mas acho que o vizinho do lado deve pensar a mesma coisa. Assim somos nós, os filhos. Sempre achamos que nossa mãe reserva sua melhor parte para outro irmão, ou irmã. Minha mãe se foi, mas o abacateiro está lá. E ambos continuam nos oferecendo seus exemplos.”
“Chega de tristeza!”, falou a Samba, segurando no meu braço e impedindo-me de estender uma peça de roupa que eu acabara de tirar da máquina de lavar. “Não, Samba. A música do Tom e do Vinícius chama-se Chega de Saudade”, informei à minha cadela mais velha. “O que eu tenho a ver com essa conversa?”, perguntou o Tom, meu gato, que vinha em direção à lavanderia. Expliquei que eu estava falando da música do Tom Jobim com o Vinícius de Moraes. “Vai, minha tristeza e diz a ela...”, cantarolei. “Eu disse chega de tristeza nesta casa. Não estava falando da música.”, reforçou a Samba. “Concordo.”, interferiu a Valsa do meio do gramado, onde tentava se livrar das brincadeiras da Rumba. “Vai, nossa tristeza...”, cantarolou a Rumba. "O que quero dizer, é que muitas outras coisas, e boas, aconteceram pra gente e está na hora de levantar esse astral.", insistiu a Samba.
"Você poderia começar escrevendo uma crônica, bem humorada, sobre a renúncia do Papa Bento XVI.", disse Lambada, a saci, que aparecera entre as folhas do abacateiro. "Benedicto XVI!", corrigiu Maracatu, seu marido, também do abacateiro. "Crônica bem humorada sobre Benedito XVI? Sobre um assunto tão sério como esse?", questionou Samba. "Acho que é uma grande idéia, porque você poderia brincar com o fato de no Brasil, e só no Brasil, o Papa ser chamado de Bento.", disse-me Valsa, colocando uma interrogação na cabeça de todos, inclusive na minha. "É verdade. Bento não é o mesmo que Benedito, no entanto, o Brasil chama o Benedito de Bento.", concordou Lambada.
Lembrei-me que estava com a TV ligada quando um dos cardeais anunciou o nome do novo papa e que também tomei um susto ao ouvir o cardeal anunciando Benedicto XVI e dali a alguns minutos a Globo já o chamava de Bento. Aquilo me chocou, mas com o tempo fui me acostumando. Agora, com esse alerta da Valsa, me voltou à cabeça aquele momento e perguntei se alguém ali tinha alguma opinião sobre o porquê dessa mudança de nome, quando era mais simples e óbvio chamar o Papa de Benedito.
"Acho que é porque soa melhor.", arriscou a Samba. "Acho que ficaram com medo que começassem a chamá-lo de Dito.", falou Tom. "Não quero pensar que seja por preconceito.", falou Rumba, que tem os pelos quase que totalmente pretos.
Instalou-se um silêncio, que foi quebrado por Maracatu: "É melhor não escrever sobre isso.".
Eu havia gostado do tema, mas concordei com Maracatu. Se eu resolvesse escrever sobre isso, iria chegar, inevitavelmente, na questão do Santo Negro Benedito e teria que me aprofundar nas críticas. Quando estiver inspirado, volto a escrever e escolho um tema menos polêmico. 

João Bid

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A VIDA

“A vida é um grande bate papo, que começa no ventre da mãe e não tem fim.”, disse Maracatu, que chegava acompanhado de Lambada à varanda, onde estávamos eu, Lisa e Tom Ravazoli (Não confundir com Tom Diego Ravioli, nosso gato. Tom Ravazoli é o ator que inspirou o nome do nosso gato) conversando após a primeira apresentação do “Causos e Poesias” para os professores da rede municipal de São Roque, na quinta-feira, dia 15.
“Causos e Poesias” é o espetáculo criado para divulgar o livro  “Ida e Volta”, de Roberto Godinho, escritor são-roquense. No espetáculo apresentamos as histórias e as poesias contidas no livro através da interpretação dos atores Tom Ravazoli e Rodholfo Heinz e da atriz Daniela Campos; canções interpretadas por mim e Edson D’aísa; e relatos feitos pelo próprio autor. O espetáculo tem ainda, o roteiro de Isabel Pezzota e direção artística da Lisa Camargo.
Conversávamos sobre o prazer de participar daquele momento, que fala sobre as raízes culturais de Roberto Godinho, nascido em Canguera, um bairro da São Roque, e que tem em seu currículo uma graduação em química na USP, um mestrado em Washington e uma capacidade enorme de emocionar ao escrever e falar sobre sua Canguera. Hoje, Godinho e Inês, sua mulher, estão agregados a esse grande bate papo, que, segundo Maracatu, é a minha vida.
As cadelas e o gato dormiam, por isso, não participavam da conversa.
Tom Ravazoli, que já atingiu a sensibilidade necessária para dialogar com os sacis, perguntou o porquê daquela intervenção. “Eu e Lambada estivemos no espetáculo de vocês e lá comentei com ela que aquilo é vida. A troca é vida. A busca é vida. Tudo isso faz parte desse grande bate papo, que nunca termina.”, disse o saci. “Como não termina? Você se esqueceu da morte?”, interferi. “O bate papo continua através das coisas que você deixar. Suas idéias, seus projetos, sua arte vão continuar dialogando com as pessoas.”, falou Lambada, a saci, com extrema segurança.
Calamo-nos por um tempo, pois aquilo era profundo. Simples, óbvio, mas profundo. “Eu nunca tinha pensado nisso, mas vocês têm absoluta razão. Eu mesmo converso todos os dias com Brecht.”, revelou entusiasmado o Tom. A Lisa, que é uma voraz leitora, sorriu e disse que nem iria relacionar seus bate papos, pois sua lista seria imensa, mas não resistiu e exaltou Saramago e Augusto Boal, com quem, aliás, foi fotografada e cuja foto está exposta no corredor de nossa casa. Revelei que meus papos são diários com Kiko, Chico e Abê, pelas coisas que me deixaram na música. E contei que meu pai lutava contra o câncer e percebeu que perderia, por isso, pouco antes de morrer, me pediu que o levasse aos dois clubes da cidade. Não entendi, mas o levei. Nas secretarias dos clubes ele perguntou se estava em dia com as mensalidades. Num deles, faltava pagar o mês corrente, no outro, a mensalidade estava em dia. Ele deixou tudo em dia e entregou uma carta de demissão do quadro de associados em cada clube. Esse ato martela na minha cabeça diariamente.
“Pois é! O Godinho conversa com os trens de passageiros, que já não existem mais no Brasil, porque estes tiveram uma presença muito forte em sua vida. Foi o trem que o levou a Mairinque pra se formar no primário; depois, o levou a São Roque, para completar o segundo grau; e finalmente, o levou para São Paulo, para se graduar na USP.”, relatou Maracatu. “E quando ele falou do cheiro da mata orvalhada; o ar de Canguera com perfume da uva no fim da colheita; do gosto do doce de mandioca em calda que sua avó fazia? Não era um diálogo com o passado, porque tudo aquilo estava muito presente em sua mente. Isso é vida.”, afirmou Lambada.
“Meu deus! Vamos abrir uma cerveja, Tom?”, perguntei. “Eu não bebo, João.”, respondeu o Tom, que não demorou a refazer sua posição. “Abra uma. Acho que agora vai ser bom.” “Eu tomo um copo também.”, disse a Lisa.
Abri a cerveja e saudamos aquele momento. Maracatu e Lambada foram para o quartinho acordar as meninas e Tom, o gato, acordou com o bater dos copos; bocejou, cumprimentou o padrinho e contou que havia sonhado que estava no sossego da mata, esticado sobre as folhas secas, quando veio uma raposa e roubou o cacho de uva que ele estava comendo. “Aí, acordei apavorado, mas vi que me encontrava na segurança do meu lar.”, falou, sorrindo, o gato, que continuou. “Mas a vida não é essa segurança toda. Há momentos...”. “Ah, Tom, pode parar. Não vai filosofar sobre a vida também, vai?”, perguntou a Lisa. “Não. Eu ia dizer que há momentos de insegurança, como o que estou vivendo agora.”, revelou. “O que está acontecendo, Tom?”, perguntei apavorado. “A ração está acabando e não vi vocês falarem em comprar mais. Isso me deixa inseguro.”, respondeu o gato, olhando firme pra mim e pra a Lisa. A Lisa não agüentou e atirou o chinelo em sua direção. Ele desviou e saiu correndo. E rindo muito.

João Bid

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O BATIZADO DA MARIA CECÍLIA DEU O QUE FALAR EM CASA

Fui ao batizado da minha sobrinha/neta, a Maria Cecília, no domingo, dia 7, e logo que cheguei na igreja vi que Maracatu e Lambada já estavam sentados ao pé da escadaria que leva ao altar. Eles não perdem um evento que tem a ver comigo ou com a Lisa, mas achei estranho o casal de sacis se interessar por um batizado. Não dei bandeira, mas fiz sinal pra eles não aprontarem nenhuma na igreja e eles concordaram, fazendo um gesto que dizia que eles sabiam onde estavam. Ainda bem que ninguém os viu e, se viu, não se assustou, ou não acreditou... Sei lá! Quem os viu e adorou, foi a Maria Cecília. Eles ficavam fazendo graça e ela sorria o tempo todo, o que deixou todos os presentes encantados com ela. A Maria Cecília é uma graça e me deixou muito feliz por não estranhar meus sacis. Até aí, tudo bem!
Após o batizado, eu e Lisa tínhamos um compromisso em São Roque e voltamos pra casa somente no início da noite. Todos estavam na varanda num papo barulhento, porque falavam ao mesmo tempo. O Tom, deitado na espreguiçadeira, a mesma que era da Rumba, mas a Rumba cresceu tanto, que não cabe mais naquele espaço; as cadelas, deitadas no chão; e o casal de sacis, que coordenava a conversa, sentado na mesinha. Desta vez a conversa era sobre Deus. Conversa, aliás, que começou depois que Maracatu e Lambada contaram sobre o batizado da Maria Cecília.
Eu e Lisa, cansados e percebendo a complexidade do tema, passamos no meio da turma e fomos entrando na casa. “Ajudem a gente a entender algumas coisas sobre Deus.”, pediu a Valsa. “Será que nós sabemos mais do que vocês?”, perguntou a Lisa. “É claro que sim. O Maracatu e a Lambada contaram pra gente sobre o batizado da Maria Cecília e, segundo eles, o padre falou o tempo todo sobre Deus. E você deve saber tudo, João, porque em nenhum momento questionou o padre.”, disse o Tom. “Saia dessa!”, me disse a Lisa, indo direto para o banho.
Percebi que não conseguiria escapar da conversa e sentei na soleira da porta. Comecei me confessando um ignorante no tema, além de agnóstico, por isso, seria difícil falar sobre algo que foge das explicações humanas, mas informei que o batizado da Maria Cecília era uma reunião de cristãos católicos e, para estes, existe um único Deus, que é pai de Jesus Cristo e criador deste mundo. “Criou todos nós?”, perguntou a Rumba. “Se é o criador deste mundo, criou todos nós.”, disse ironicamente a Samba. “Então o mundo está sob os olhares de um único Deus?”, perguntou a Salsa. Eu disse que, para os cristãos, sim, mas argumentei que existem outras religiões, cujos fiéis acreditam em Deuses, ou num outro Deus.
A coisa começou a ficar complicada, quando a Valsa resolveu analisar a situação. “Hitler era cristão; São Francisco de Assis era cristão; isso quer dizer que o Deus de Hitler é o mesmo Deus de São Francisco?”, perguntou a cadelinha.  Respondi que, teoricamente, sim. “Mas o Deus do vereador Carlos Apolinário não pode ser o mesmo Deus da irmã Dulce, por exemplo, embora os dois sejam cristãos. O Apolinário acabou de propor a criação do ‘Dia do Orgulho Heterossexual’, para preservar a família e os bons costumes, demonstrando claramente todo seu preconceito, coisa que a irmã Dulce jamais teve. Como é possível os dois acreditarem no mesmo Deus?”, filosofou Lambada. Fiz uma tentativa de falar, mas fui interrompido por Maracatu. “Frei Tito e Médici eram cristãos. Um foi torturado quando o país era comandado pelo outro. Seguiam o mesmo Deus?”, perguntou o saci.
Após essa pergunta, fez-se silêncio e todos refletiram. “Cada um de nós tem seu próprio Deus.”, definiu Lambada, interrompendo o silêncio. “Ou... cada um de nós é Deus.”, concluiu Tom, sorrindo e enchendo o peito para iniciar um discurso. Interferi citando uma poesia de Roberto Godinho, um escritor são-roquense, que fala sobre a ansiedade de um homem no dia em que conheceria Deus e sua surpresa quando lhe mostraram um espelho.
Não chegamos à conclusão alguma, mas avançamos um pouco num tema que deverá estar presente em outras de nossas conversas, que também não serão conclusivas.
Encerramos aquele papo, mas percebi que as cadelas, os sacis e o gato ficaram um pouco frustrados, porque, tarde da noite, da janela do meu quarto, ouvi trechos do debate que eles ainda travavam na porta do quartinho, até que a Valsa, entre um bocejo e outro, questionou Maracatu e Lambada. “Por que vocês não perguntaram pra Maria Cecília? Acho que só ela tem essa resposta.”
O Tom, que estava quase dormindo ao pé da minha cama, despertou. “Sabe que a Valsa tem razão!”, disse o gato, arrematando, um pouco decepcionado: “Pena que nós nunca vamos saber, porque quando a Maria Cecília estiver falando já terá recebido todas as influências do meio e não se lembrará desta e de muitas outras coisas interessantes.” Colocou a pata esquerda sobre os olhos, para evitar a luz da TV, e voltou a dormir.

João Bid

segunda-feira, 13 de junho de 2011

E FINALMENTE A RUMBA FALOU

Numa dessas noites muito frias, apesar de sabermos que as meninas estão muito bem instaladas no quartinho delas, ficamos sensibilizados e convidamos todo mundo pra assistir TV. A Salsa, mesmo tendo perdido a visão, era a mais animada, pois ela curte muito ficar exercitando sua imaginação. 
Não me lembro qual era o programa, mas lembro que tentei mudar de canal quando anunciaram uma entrevista com Jair Bolsonaro e fui impedido, porque todos, afora eu e Lisa, estavam curiosos para conhecer a cara do autor de inúmeras manifestações homofóbicas.
Bastou a primeira resposta daquela coisa, para ouvirmos uma voz infantil, porém, numa linguagem clara, com fim de frase bem definido, sílabas bem articuladas e um timbre muito gostoso. “Esse cara é um babaca”. Era a Rumba, finalmente falando. Antes de comemorar o momento, tive tempo de observar que essa voz, assim que madura, chegará muito próxima da voz de Cris Delano, para mim, a melhor cantora brasileira (procurem ouvir). 
Todos nós ficamos muito felizes e comemoramos. Lambada estava toda orgulhosa por ter sido a responsável pelos ensinamentos transmitidos à Rumba e mais orgulhosa ainda, pela lucidez da primeira manifestação daquela nossa menininha. Pra variar, a Lisa chorou. Valsa quis começar uma conversa com a Rumba, mas foi interrompida pela Salsa, que foi a única a ouvir a segunda resposta do político. “Escroto, fascista e enrustido. Gente desse tipo deveria ser proibida de viver em sociedade.” Voltamos as atenções para a TV e na terceira resposta, que vinha contida de um ódio profundo pelos homossexuais, o Tom apertou a tecla off do controle remoto. “Não precisamos continuar ouvindo esse idiota falar.”, afirmou o gato. 
Samba ainda estava brigando com o Tom, porque achava que deveríamos ouvir toda a entrevista daquele monstro, mas Lambada, pedindo licença, perguntou: “Posso aproveitar este momento pra contar uma história?”. Samba cedeu e todos silenciaram para ouvir a saci.
Lambada iniciou contando que, há muito tempo, num recanto da Floresta Amazônica, nasceu um saci com duas pernas. “Que bacana!”, interferiu a Valsa. “Não foi dessa forma que a comunidade recebeu a notícia.”, rebateu Maracatu, fazendo sinal para que Valsa deixasse a Lambada continuar a história. Lambada continuou, relatando que muitos sacis olhavam para aquele ser com repugnância; outros ficaram penalizados; e alguns poucos, iniciaram um movimento para isolar a saci que dera a luz àquele ser estranho. A mãe demonstrava certo desespero com a situação, pois sentia que, mesmo não externando esse sentimento, todos queriam explicações, mas ela não as tinha e sofria com a possibilidade de ver seu filho sendo vítima de preconceito no futuro.
O sacizinho cresceu um pouco e, nos seus primeiros passos, tropeçava nas pernas e caía, invariavelmente. “Tadinho!”, sussurrou Samba. Lambada continuou contando que os outros sacizinhos riam muito e começavam a isolá-lo de suas brincadeiras. Passados mais alguns anos, o saci, já se equilibrando, percebeu que, com duas pernas, poderia ser muito mais rápido que todos os sacis da comunidade e aí passou a ser vítima da inveja de alguns, já que ele era o mais solicitado para as tarefas mais difíceis. Essa inveja fortaleceu o preconceito de outros, que, veladamente, se juntaram contra aquele saci. “O impressionante”, dizia Lambada, “é que quanto mais o ódio por ele crescia, mais ele amava sua comunidade; maior era sua dedicação à ela.” 
Continuando, contou que os anos foram mostrando para a comunidade que a diferença daquele saci não era apenas na aparência, mas também, na capacidade de amar. Todos diziam que ele não era apenas mais veloz que os outros, mas também amava mais que todos. Ele dizia que não amava mais, nem menos, mas simplesmente de forma diferente. Por fim, depois de ter adquirido o respeito de todos e de ter se tornado um dos líderes, o saci foi embora sem avisar ninguém, deixando a comunidade saudosa, mas feliz por ter convivido muitos anos com aquele ser tão especial. Acontece que o saci resolveu ir embora de sua comunidade quando descobriu que havia nascido com outro defeito. No seu peito batiam dois corações.
“Dizem que hoje ele anda por todas as florestas e cidades deste país espalhando seu amor e que quando sentimos súbitas alegrias sem motivos aparentes, é ele quem está passando em nossa frente, mas, de tão rápido, nem conseguimos vê-lo.”, finalizou Lambada.
Confesso que foi difícil conter as lágrimas e ficamos todos sem voz, com exceção de Rumba, que por estar em fase final dos estudos, acostumou-se a colocar suas dúvidas. “Será que os homossexuais também têm dois corações, por isso, podem amar mais?”, perguntou. “Não! Eles não amam mais, nem menos, apenas de forma diferente.”, respondeu a Salsa. “E aquele deputado não entendeu isso ainda?”, replicou a cadelinha. “Um dia ele vai entender. Um dia todos vão entender”, profetizou Maracatu. 

João Bid

quinta-feira, 26 de maio de 2011

SENSO ESTÉTICO É UMA QUESTÃO CULTURAL

Hoje temos nossa varanda de volta, porém, logo que a Rumba chegou e se apaixonou pela espreguiçadeira, liberamos esse espaço nobre da casa para ela e as outras cadelas. Confesso que foi difícil retomá-la, porque, além da Rumba, a Salsa estava feliz com o cantinho que já havia tomado, mas não dava mais pra ficar ouvindo nossas visitas cobrarem a reintegração de posse daquele espaço. 
Nesse breve espaço de tempo, cansamos de acordar e encontrar as cadelas, os sacis e o gato espalhados pela varanda, batendo longos papos. Participamos de muitos desses papos, mas um deles ficou na minha cabeça. Foi num domingo, dia de céu aberto, com as duas janelinhas da varanda voltadas para leste recebendo o sol da manhã e a brisa passeando de sul para norte no espaço. Maracatu e Lambada enrolados na rede; Samba sentada em frente à mesinha, que fica encostada na parede, mas no centro da varanda; Rumba, obviamente, na espreguiçadeira; Salsa embaixo dela; e o Tom em cima da grade que separa a varanda da frente da casa. Realmente uma manhã deliciosa para um bom papo. Eu e Lisa abrimos a janela que dá para a varanda e nos acomodamos ali, após ouvirmos o Maracatu dizer: “Lembra aquela peça teatral do Millôr Fernandes ‘Um elefante no caos’, que se passava num prédio de apartamentos e seus moradores conviviam com um incêndio que nunca acabava. O bombeiro, na peça, já era amigo de todos e estava sempre tomando café no apartamento da Maria, a protagonista da história.” “Vocês estão falando de teatro? Tô dentro.”, disse a Lisa. 
“Não. Eu estava falando da praça do nosso bairro, que está em reforma faz mais de um ano e não dá pra imaginar quando ficará pronta, pela morosidade da obra, quando o Maracatu fez essa analogia.”, contou Lambada, que completou, “Eu e Maracatu passamos todas as madrugadas ali e perece que está sempre do mesmo jeito.” “Que nem o incêndio no prédio da peça do Millôr. Não acabava nunca.”, falou Maracatu, em meio a risos.
“Vocês riem, mas deveriam chorar. Não é legal viver numa cidade que num dia programa luta livre na festa do padroeiro, no outro, realiza um rodeio sem nenhuma tradição local, nem mesmo um peão Mairinque tem, e, agora, com a reforma de uma praça que nunca termina.”, disse o Tom, demonstrando certa mágoa na voz. “A gente, que nasceu aqui, não fica feliz com isso.”, completou o gato. “Sem falar nos outros absurdos que acontecem aqui.”, disse a Valsa, que é sãorroquense de nascimento. “Se é como o Maracatu e a Lambada contam pra gente, a coisa tá feia.”, falou a Salsa.
Samba, que nessa altura da conversa se mostrava indignada, me questionou: “Sem querer duvidar do Maracatu e da Lambada, me responda. É verdade que a porta de entrada do Teatro Municipal de Mairinque fica atrás de uma roda-gigante?” Expliquei que isso ocorre somente durante a festa de São José, quando, por falta de espaço, montam uma roda-gigante, de fato, na porta do teatro. “Que absurdo!”, interrompeu a cadela, que fez mais uma questão. “E a porta de entrada da escola de arte? É verdade que fica atrás de um carrinho de hot-dog?”. Nesse momento, a Lisa não aguentou e deixou escapar uma risada, mas engoliu-a imediatamente após receber olhares de censura, pois todos estavam penalizados com a tristeza da Samba e do Tom. Abaixei a cabeça e fui obrigado a acenar positivamente, porque realmente a porta de entrada da escola de artes fica atrás de um carrinho de hot-dog. Samba fechou a boca, se virou e saiu da varanda, seguindo direto para o quartinho, muito envergonhada e chateada. Tom pulou da grade para cima do telhado e sumiu. Eu, que sou nascido em Mairinque e adoro a cidade, saí da janela e fui para o computador. Do gramado, onde estava iniciando uma brincadeira com a Rumba, Valsa tentou minimizar a situação constrangedora. “Mas, em compensação, os camelôs não estão mais nas calçadas da praça do nosso bairro!”, vibrou a cadela. “Pois é! Agora eles estão instalados bem na entrada da Estação, a primeira construção em concreto armado do país.”. ironizou Maracatu. “Instalaram os camelôs numas barracas metálicas de um mau gosto ímpar. Hoje, a nossa estação está escondida pelas barracas.”, lembrou Lambada. “Pelo amor de deus! Isso tá parecendo ensaio fotográfico de Sebastião Salgado.”, gritou Salsa, encerrando conversa.
À noite, eu e Lisa avaliávamos que a gente anda pela cidade e acaba se acostumando com a paisagem, não notando detalhes que realmente deveriam chocar, como chocaram nossos sacis, nossas cadelas e o gato. Lisa argumentava que tudo é uma questão cultural e exemplificou com a televisão brasileira, citando a TV do Silvio Santos, que tem uma programação de mau gosto a toda prova, porque o bom gosto não faz parte da cultura de seu proprietário. Lamentamos então, o azar do povo mairinquense, que elegeu políticos que não incluíram em suas culturas o senso estético apurado. O Tom, que estava tomando seu último gole de leite antes de dormir, fechou a conversa fazendo uma maldade. “Bem diferente do Maracatu e da Salsa, que numa conversa de alguns minutos citaram Millôr Fernandes e Sebastião Salgado... É! Os políticos poderiam pelo menos dar ouvido aos animais e aos seres de nosso folclore, já que nunca ouvem seu povo.”

João Bid

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O SUPER-HERÓI CAPITOM

Chegando à tarde em casa, eu e Lisa, conversávamos no carro sobre a certeza de termos de fazer malabarismos para escapar das investidas das cadelas ao abrirmos o portão. A Rumba, que está no auge de sua infância, é a que nos ataca com mais veemência, em busca de carinho, atenção, enfim, aquelas coisas de criança. Temos até uma musiquinha que cantamos em uníssono nesses momentos. É uma canção que está na trilha sonora do filme “Bagda Café” e se encaixa direitinho nesse evento em que se tornou nosso encontro com as cadelas, depois de um dia inteiro sem vê-las.

Nesse dia, porém, uma surpresa: nenhuma delas no portão. Trocamos um olhar e rimos, porque era uma questão de poucos segundos para estarem todas na grade da frente, pulando e latindo, ansiosas por nos atacarem. Abrimos o portão e nada. A partir daí, nossos olhares passaram a ser de preocupação.
Nem fomos para a porta da sala. Pegamos o corredor da direita e, quando íamos começar a correr para o fundo da casa, ouvimos a voz do Tom: “Sentido!”. Já no fim do corredor, pudemos ver as quatro cadelas alinhadas na grama e o Tom, o gato, usando o quepe do tenente da peça “Era uma vez”, que o grupo de teatro da Lisa está encenando, no centro da passarela de concreto, dando os comandos. “Direita!”, gritou o gato. Nesse instante, a Rumba percebeu nossa presença e olhou para a nossa direção. Estávamos à esquerda. O Tom gritou ainda mais alto: “Eu falei direita.” A Valsa também nos viu e tentou sair da formação. Acabou tomando uma dura. “Soldado Valsa, fique no seu lugar. Ainda não dispensei o ‘pelotom’.”, falou firme o gato.
A Salsa, cega que está, era um caso à parte, pois estava sempre desalinhada, mas o Tom, nesse caso, falava com mais calma. “Salsa, vem um pouco mais pra frente. Vire um pouco pra esquerda pra ficar de frente pra mim.”, dizia o gato, com voz mais baixa e paciente.
Em cima do telhado da casa estavam Maracatu e Lambada, os sacis, que não paravam de rir.
“Você sabe o que é isso, né?”, me perguntou a Lisa, quase que sussurrando. Fiz sinal que sim e continuamos olhando. 
Acontece que a Polícia Militar se instalou em frente de casa e, dia desses, a Lisa viu o Tom saindo do Pelotão tranquilamente. Isso nos preocupou um pouco até sabermos que ele é muito bem tratado lá.
“Descansar!”, gritou o gato. “’Pelotom’! Dispensado.”, encerrou o treinamento o comandante. Samba, Valsa e Rumba dispararam em nossa direção, enquanto que o Tom ajudava a Salsa a sair da grama e se orientar para também vir até nós. O Tom se dirigiu ao quartinho para guardar o quepe, de onde deu mais uma ordem: “Meninas! Amanhã, no mesmo horário.” Maracatu e Lambada desceram do telhado e fomos todos pra varanda.
Na varanda, a Rumba, que ainda não fala, começou a latir em diversos volumes e timbres e Lambada, que será sua professora, traduzindo. “Ela quer dizer que achou muito divertida a brincadeira do Tom.”, informou a saci. “Brincadeira! Ele tá levando a sério a formação de um pelotão. Aliás, ele quer que chame de ‘pelotom’, o pelotão do Tom.”, disse a Valsa. “Acho que ele pirou, porque também inventou o ‘Capitom’, capitão Tom. Tá se sentindo um super-herói.”, falou a Samba, rindo. Salsa, mais introspectiva e pensante, opinou pelo lado filosófico e sociológico: “A busca do poder, às vezes, é feita por caminhos que desconhecemos. É preciso identificar o caminho trilhado pelo Tom, para depois combatermos a causa e trazê-lo novamente para a realidade.” Fez-se silêncio, quando entrou na varanda o alvo de nossa conversa. 
“Sente aí, Tom. Vamos bater um papo.”, convidou a Lisa. “Não. Vou dormir um pouco agora, pra ficar de guarda quando as meninas dormirem. Não podemos deixar nossa casa desprotegida.”, respondeu o gato, que entrou e, antes de deitar, assobiou a primeira parte de “Il Silenzio”. 
“Não se preocupem. O Tom está sofrendo a influência das novas amizades com os soldados da Polícia Militar aí da frente. Logo-logo ele volta a ser o nosso Tom.”, disse Maracatu. 
Pra mudar de assunto, perguntei ao casal de sacis o que eles têm visto de arte. Maracatu, meio desanimado, disse que viu algumas coisas interessantes pela região e assistiu a atração de fechamento da Festa de São José, o Padroeiro de Mairinque, só para ver se era verdade o que estavam anunciando, que para ele era um absurdo. Quisemos saber o que era e Lambada contou que eles foram no último dia da festa e estava programada, como atração principal, um festival de Luta Livre. “Acho que vocês não viram direito, porque não é possível terem programado ‘luta livre’ para o último dia de uma festa religiosa.”, falei espantado. “Fico imaginando o padre anunciando: ‘Logo após a missa, teremos um sensacional festival de Luta Livre na praça’”, falou a Valsa,rindo muito. “O pior é que, como choveu, a luta foi transferida para o palco do Teatro Municipal.”, acrescentou Maracatu. “Isso é brincadeira... me recuso a acreditar... no Teatro Municipal?!”, disse a Lisa, quase se afogando com um pedaço de chocolate, mas Lambada foi enfática: “Também não acreditamos, porém, foi o que vimos.” “Vocês contaram isso pro Tom?”, perguntei. “Contaram, com detalhes.”, informou a Samba. “Então, está explicado.”, concluiu a sábia Salsa.
Passados três dias, o Tom passou o dia dormindo e à tarde não incomodou as meninas. Todos perceberam a mudança, mas não quiseram questionar com medo que o gato retomasse o “Pelotom”. À noite, puxei conversa com ele e não resisti. Perguntei o que tinha ocorrido. O Tom me explicou que quando os sacis contaram a história da luta livre na Festa de São José, ele ficou apavorado ao imaginar que na Festa de São João Batista, que seria a próxima, a programação poderia trazer o tal do Vale Tudo e o pior poderia ocorrer na Festa de São Benedito, que é no nosso bairro. “Aí eu pirei e comecei imaginar que poderia acontecer um festival de seres estranhos, desses homofóbicos, ou racistas, ou ainda aqueles que gostam de maltratar animais em rodeios, e pensei em usar os conhecimentos adquiridos com meus amigos da PM pra proteger nossa casa, mas acho que já passou.”, me contou o gato. Perguntei o que aconteceu pra ele mudar de opinião e ele me disse que assim que soube que a Prefeitura foi quem programou a tal Luta Livre, ficou mais tranqüilo, porque sabia que os cristãos ficariam mais atentos e não permitiriam a repetição desse absurdo. 
“Digo adeus ao Capitom, então?”, perguntei sinicamente. “Por ora, sim.”, respondeu ele.


João Bid

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

VENCENDO PRECONCEITOS

Fiquei um tempo sem relatar as conversas de casa, porque as conversas rarearam mesmo, já que algumas coisas chatas aconteceram com a gente.
Perdemos o amigo, o irmão, o parceiro musical, enfim, a pessoa maravilhosa, que era o Abelardo, o Abê, que além de cantar no Catavento comigo, é um grande artista plástico. Aliás, o Abê cantava e tocava seus instrumentos com o mesmo cuidado que pintava; assim como, pintava seus quadros com a mesma intensidade com que interpretava uma canção. Já havíamos perdido José Saramago, escritor que inspira nosso cotidiano. E, na sequência, a Salsa, a cadela mais gorda e peluda, a mais tímida e séria, está com diabetes e, por conseqüência da doença, ficou cega.
Por tudo isso, os dias ficaram mais silenciosos nesses últimos meses. Todos respeitando a forma e o tamanho com que a dor se apresentou em cada um de nós.
Um fato novo trouxe um pouco de alegria para a casa e a chance das conversas voltarem a fluir. Não tenho dúvidas que Abê e Saramago também se alegraram com esse fato. Dilma ganhou as eleições e logo no dia seguinte as coisas já estavam diferentes.  
“Cala a boca, Tom!!!”, ouvi, quando estava no corredor interno da casa, me dirigindo à cozinha. A fala vinha do corredor externo. Abri a janela que dá para a garagem e vi a Samba rindo de pernas pro ar e aproveitando para coçar às costas, com movimentos que, se juntando ao riso, criavam uma espécie de performance pós moderna. Realmente bacana.
Perguntei o que estava ocorrendo e a Samba, entre risos, disse-me que a Salsa estava fazendo ameaças ao Tom, o gato, invocando até a vitória da Dilma para isso.
Abro um parêntese para falar um pouco sobre a situação da Salsa. Somente agora ela está mais habituada com o espaço que deve explorar sem a visão, mas, no começo, ela andava batendo a cabeça, indo para o lado errado, o que nos deixava chateados. Com o tempo, a Salsa mesmo foi nos deixando mais à vontade, se permitindo, até, brincar com a situação. “No começo a gente acha que o mundo acabou, mas, depois, a adaptação é natural e você acaba descobrindo coisas tão belas quanto aquelas que você pode enxergar. Aliás, que você pode ver; porque você somente consegue chegar o mais próximo de enxergar de verdade, quando já não pode mais ver.”, filosofou a Salsa, um belo dia. Digo um belo dia, porque, a partir dali, ficamos mais à vontade para conversar com ela, sem achar que a cadela ficou sem algo, mas sim, pensando que ela ganhou algo, que nós não conseguimos imaginar. Algo que pode, até, ser melhor. “Hoje, tenho mais tempo pra ficar comigo,” concluiu a cadela.
Então, voltando ao dia seguinte da vitória da Dilma, a Salsa entrava no corredor para se dirigir ao quartinho do fundo do quintal e o Tom, da janela da cozinha, dirigindo seus passos, mas, obviamente, apontando para direções erradas, criando armadilhas para os passos da Salsa. “Vem pra esquerda!”, orientou o Tom, e a Salsa derrubou a vassoura, que estava encostada na porta da cozinha. “Mais pra direita!”, ajudou o gato, e a pata da cadela mergulhou na vasilha de água; “Segue em frente”, incentivou o Tom, e a cabeça da Salsa parou no botijão de gás.
Foi aí, que a Salsa gritou: “Cala a boca, Tom!!!, Cuide da sua vida! Aliás, cuide bem da sua vida, porque, agora, quem manda aqui são as mulheres. Você vai experimentar o toque feminino, seu gato safado. E cuidado ao passar perto de mim, pois meu faro está mais aguçado e posso te dar um bote muito mais certeiro agora.” “É Dilma lá e nós aqui”, alfinetou a cadelinha Valsa.
“As mulheres vão dar um toque feminino e folclórico no governo, já que a vitória da Dilma se deu no dia em que o Brasil comemora o Dia do Saci.”, lembrou a saci Lambada, com quem, concordou o saci Maracatu. “É! Isso é motivo de muito orgulho para nós.”
Como estávamos no meio do feriado, reservei aquela tarde para cortar a grama do quintal.
Estava eu arrancando tiriricas, com Samba e Valsa à minha volta e Salsa um pouco mais distante, quando vejo que o Tom se aproximava. Embora a convivência entre cães e gato tenha melhorado lá em casa, ainda me preocupo quando eu e a Lisa estamos próximos dos animais. Ainda tenho medo que o ciúme faça com que as cadelas ataquem o Tom. Mas... o Tom se aproximava e estava para passar na frente da Salsa. Lembrei que a Salsa havia prometido um bote certeiro e fiquei preocupado. Agora, o Tom estava com a metade do corpo em frente à Salsa e notei que ela farejava pra determinar a distância. O rabo dele iria encostar no nariz dela e o rabo dela começava a balançar. Fixei os olhos naquela direção, pronto para evitar o pior, quando o rabo do Tom tocou, de fato, o nariz da Salsa. Quis fechar os olhos, mas resisti e não o fiz. Nesse momento, a Salsa respirou fundo, abriu um sorriso, coisa rara naquela cadela, e, não tenho dúvida, se sentiu um degrau acima na sua evolução enquanto ser, quase humano.
Ali, percebi que o governo Dilma Roussef começava a se desenhar. Os preconceitos estão sendo vencidos e os seres terão mais chances de se entenderem melhor.
Arrepiei, porque, concomitantemente ao ocorrido, dois raios de sol se espremeram entre as nuvens carregadas e, por um breve instante, iluminaram o quintal.
O sol se foi em seguida, deixando uma brisa e a certeza de que Abê e Saramago estavam passando por ali e também curtiram aquele momento de grandeza da Salsa. Vencer os preconceitos sempre foi um dos ideais dos dois.   
     
      João Bid

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

DESMATAMENTO NO HORTO FLORESTAL

“Aqui, a destruição do meio ambiente começou na década de 70, do século passado, quando começamos a abandonar o Horto, a represa Itupararanga, a Estação Ferroviária e tudo que tínhamos de mais bonito e valioso, para cuidarmos da industrialização.”, falei à Lisa, numa de nossas conversas diárias e matutinas. Falávamos sobre a notícia que dava conta de mais uma devastação de eucaliptos na cidade de Mairinque. Desta vez, no Parque Municipal do Horto Florestal Antonio Anselmo. O cúmulo do paradoxo.

Lamentávamos o fato e buscávamos explicações, quando Maracatu, o saci macho, ainda do lado de fora da casa, não agüentou e pediu licença para entrar e interferir na conversa. “É simples! Desconhecimento histórico de quem deu a ordem para cortar os eucaliptos”, disse ele.

A Lisa, que é licenciada em história e gostou da intervenção, perguntou qual era a relação nesse caso.

“Quem deu a ordem deve estar apoiado naquela teoria que coloca o eucalipto como uma vegetação menor e até prejudicial ao solo, porém, se esquece que Mairinque tem origens na ferrovia.”, ensinou o saci. “E o que a ferrovia tem a ver com o corte de eucaliptos?”, perguntou Samba, que estava deitada no tapete, que fica na porta da cozinha. “Com o corte, nada, mas sim com o plantio. A madeira era o combustível usado pelas locomotivas, por isso, a antiga Estrada de Ferro Sorocabana criou hortos florestais em várias cidades por onde a ferrovia passava.”, respondeu Maracatu.

Salsa, que estava sob a janela da cozinha, degustando um pedaço de pão, tinha tudo pra não entrar na conversa, mas acabou não resistindo. “Você bem disse, Maracatu. A madeira era o combustível; não é mais; então, nada impede que seja cortada.”, ironizou a cadela. Maracatu, um pouco irritado, continuou, “Ainda não entrei no caso do corte em si, estou primeiro historiando. O Horto Florestal de Mairinque é um caso especial, porque ali funcionava uma espécie de laboratório, já que foram plantadas várias espécies de eucalipto com o objetivo de se chegar no apropriado para a utilização deste como combustível. Por isso, aliás, é que Mairinque era comparada a Campos do Jordão. O ar daqui era muito bom para tratamento de algumas doenças respiratórias, porque os eucaliptos garantiam essa qualidade.”, concluiu Maracatu.

Tom, o gato, estava dormindo no pufe e, vez ou outra, abria os olhos como que pedindo para a conversa manter um nível de volume aceitável, mas percebia-se que, mesmo sonolento, estava entendendo o rumo da discussão. Quem não estava entendendo, era a Valsa, a cadelinha mais nova. “Tudo bem, essa história é muito bonita, mas o que tem a ver com os cortes dos eucaliptos?”, perguntou ela. “Tudo a ver...”, respondeu Lambada, a saci, que até ali, se mantinha muito atenta, continuando, “alguém que conhece essa história, que sabe da importância dessa árvore na criação deste município, jamais se arriscaria a passar pela vergonha de autorizar essa devastação. Aliás, essa pessoa não deve nem conhecer o Hino Oficial de Mairinque. Se conhecesse, não daria a ordem, pois imaginaria que não foi de graça que os autores do hino colocaram um papel de destaque para os eucaliptos naquela letra.”, ressaltou Lambada.

“Parabéns Maracatu! Parabéns Lambada! Realmente perfeita essa análise.”, sentenciou a Lisa, que completou: “E, mais uma vez, a falta de investimentos na cultura acaba gerando conseqüências lamentáveis e altamente prejudiciais para uma comunidade inteira.”

“E vocês, que estão aqui desde a década de 60 do século passado e vivem falando de investimentos na cultura e nas artes, não fizeram nada?”, perguntou a Salsa. “Salsa! Você já ouviu alguém falando que pregou no deserto?”, perguntou o Tom, com a voz um pouco rouca, por conta de um pigarro, natural em quem acaba de acordar. Salsa, se dirigindo para o quartinho, gritou que sim. “Pois é! Acho que esse é o caso.”, concluiu o gato. “E se não derem um basta nessa devastação, os mairinquenses vão acabar pregando no deserto, literalmente.”, profetizou a Samba, também gritando, pois acompanhava a Salsa.

Terminamos ali nossa conversa, mas ainda deu tempo de ouvir a Valsa, correndo atrás das outras cadelas, quase na porta do quartinho, perguntar pra Samba: “Se Mairinque virar um deserto, você não acha que as pessoas vão querer criar camelos e a gente acaba perdendo nosso espaço?”. Samba não respondeu, mas balançou a cabeça e sorriu.

João Bid

terça-feira, 15 de junho de 2010

CASTIGO

No início da semana, no trabalho, eu, Chiquinho e Wagner conversamos sobre as dificuldades de se criar um filho nestes tempos, porque, se descuidar, os filhos acabam determinando os rumos da coisa e você termina refém. O Chico tem dois filhos homens e uma menina e o Wagner um casal. Como não tenho filhos, acabei mal comparando com a minha situação de refém das minhas cadelas, meus sacis e meu gato.

Nós três trabalhamos juntos e dividimos o mesmo espaço há vinte anos, porém, pelas características de cada um, convivemos muito bem e penso até que daria para ficar mais uns vinte anos juntos. Nos divertimos muito, filosofamos, nos indignamos, sem esquecer da questão do trabalho, que, por incrível que possa parecer para quem nos conhece, tocamos com muita seriedade.

Mas, falávamos sobre a força das crianças e a personalidade de alguns jovens e adolescentes, que conseguem dominar e comandar uma família (não é o caso de nenhum dos dois). Nossas opiniões são diferentes, mas não divergentes. Eu, para variar, acho que falta cultura, aqui representada por seu braço mais forte: a arte.

Um dia depois, ao chegar de São Roque, onde dá aulas e dirige um grupo de teatro formado por adolescente, a Lisa me contou que o pai de uma das alunas a proibiu de se apresentar com o grupo num evento, como forma de castigá-la, porque esta havia cometido uma falta qualquer na escola.

Diante da coincidência, contei a conversa que tive no trabalho e elogiei o fato de a aluna da Lisa ter obedecido o pai, argumentando que uma menina que faz teatro entende com mais facilidade o que significa o respeito pelo pai. “É a arte!”, comemorei.

“É! Mas foi exatamente a arte que o pai pensou em cortar como forma de castigar a menina.”, disse o Tom, em cima do pufe, de onde acabara de acordar, ainda meio bocejando. “Eu ia dizer isso.”, se manifestou a sempre muito sensível Lambada. “Acho que são saudáveis esses castigos. É preciso fazer com que o adolescente sinta que cometeu uma falta, por isso, é importante que os pais os impeçam de fazer algo que gostam.”, disse eu, pensando no papo que tive com meus amigos. “Concordo. Mas precisava ser o teatro, já que, como você mesmo disse, foi o próprio teatro que ensinou a menina a respeitar o pai?”, argumentou Maracatu. A Lisa abriu um sorriso irônico, que normalmente me irrita, mas desta vez, entendi que havia uma incoerência na minha fala. Olhei para o tapete, onde se encontravam Samba, Salsa e Valsa, em busca de apoio. “Acho melhor colocar a Valsa no teatro, ou na música, pra ver se ela acalma um pouco”, disse a Samba. A Salsa nem precisava dizer nada. Seu olhar era mais irônico que o riso da Lisa. “Quero fazer dança!”, disse a Valsa, já esticando as patas dianteiras para o alto e dando um rodopio.

“O pai poderia ter cortado duas semanas de internet.”, disse a Salsa; “ou três finais de semana de baladas”, disse a Samba; “ou dois meses sem beijar o namorado”, disse a Valsa. Inevitável! Todos riram.

Assumi minha incoerência e ficamos nos questionando sobre a necessidade de fazer as crianças e os adolescentes terem contato com as artes, mas de forma muito séria e não somente como uma forma de ocupar seus tempos. “Ainda vai demorar um pouco pra entenderem isso, principalmente o poder público.”, concluiu Lambada.

A Lisa quis continuar no tema e ressaltou o ambiente isento de preconceitos no mundo das artes, o que, em sua opinião, contribui ainda mais para a formação de verdadeiros cidadãos. “Sem falar na possibilidade de descobrir talentos artísticos.”, lembrou Maracatu. “Tenho absoluta certeza de que entre os adolescentes envolvidos em atos de vandalismo, nenhum está ligado de alguma forma às artes.”, garantiu Lambada, chamando Maracatu para a saída noturna. “Você tem razão. É porque a arte trabalha a sensibilidade da pessoa.”, definiu o Tom, com ar intelectualizado.

Debatemos mais um pouco, concluindo que, mesmo que seja como um trabalho de formiga, devemos insistir diariamente na importância da arte para a formação do ser humano e pedir para os pais, também diariamente, que não castiguem seus filhos tirando a possibilidade do contato deles com as artes.

Mais tarde, quando as cadelas se dirigiam ao quartinho pra dormir, ao passarem pela minha janela, ouvi a Salsa falando pra Valsa: “Tô morrendo de sono. Amanhã, não quero que você acorde cantando.” “Você não entendeu nada, Salsa?”, reclamou a Valsa. “Brincadeirinha... brincadeirinha...”, disse a Salsa, bocejando.

João Bid