segunda-feira, 13 de junho de 2011

E FINALMENTE A RUMBA FALOU

Numa dessas noites muito frias, apesar de sabermos que as meninas estão muito bem instaladas no quartinho delas, ficamos sensibilizados e convidamos todo mundo pra assistir TV. A Salsa, mesmo tendo perdido a visão, era a mais animada, pois ela curte muito ficar exercitando sua imaginação. 
Não me lembro qual era o programa, mas lembro que tentei mudar de canal quando anunciaram uma entrevista com Jair Bolsonaro e fui impedido, porque todos, afora eu e Lisa, estavam curiosos para conhecer a cara do autor de inúmeras manifestações homofóbicas.
Bastou a primeira resposta daquela coisa, para ouvirmos uma voz infantil, porém, numa linguagem clara, com fim de frase bem definido, sílabas bem articuladas e um timbre muito gostoso. “Esse cara é um babaca”. Era a Rumba, finalmente falando. Antes de comemorar o momento, tive tempo de observar que essa voz, assim que madura, chegará muito próxima da voz de Cris Delano, para mim, a melhor cantora brasileira (procurem ouvir). 
Todos nós ficamos muito felizes e comemoramos. Lambada estava toda orgulhosa por ter sido a responsável pelos ensinamentos transmitidos à Rumba e mais orgulhosa ainda, pela lucidez da primeira manifestação daquela nossa menininha. Pra variar, a Lisa chorou. Valsa quis começar uma conversa com a Rumba, mas foi interrompida pela Salsa, que foi a única a ouvir a segunda resposta do político. “Escroto, fascista e enrustido. Gente desse tipo deveria ser proibida de viver em sociedade.” Voltamos as atenções para a TV e na terceira resposta, que vinha contida de um ódio profundo pelos homossexuais, o Tom apertou a tecla off do controle remoto. “Não precisamos continuar ouvindo esse idiota falar.”, afirmou o gato. 
Samba ainda estava brigando com o Tom, porque achava que deveríamos ouvir toda a entrevista daquele monstro, mas Lambada, pedindo licença, perguntou: “Posso aproveitar este momento pra contar uma história?”. Samba cedeu e todos silenciaram para ouvir a saci.
Lambada iniciou contando que, há muito tempo, num recanto da Floresta Amazônica, nasceu um saci com duas pernas. “Que bacana!”, interferiu a Valsa. “Não foi dessa forma que a comunidade recebeu a notícia.”, rebateu Maracatu, fazendo sinal para que Valsa deixasse a Lambada continuar a história. Lambada continuou, relatando que muitos sacis olhavam para aquele ser com repugnância; outros ficaram penalizados; e alguns poucos, iniciaram um movimento para isolar a saci que dera a luz àquele ser estranho. A mãe demonstrava certo desespero com a situação, pois sentia que, mesmo não externando esse sentimento, todos queriam explicações, mas ela não as tinha e sofria com a possibilidade de ver seu filho sendo vítima de preconceito no futuro.
O sacizinho cresceu um pouco e, nos seus primeiros passos, tropeçava nas pernas e caía, invariavelmente. “Tadinho!”, sussurrou Samba. Lambada continuou contando que os outros sacizinhos riam muito e começavam a isolá-lo de suas brincadeiras. Passados mais alguns anos, o saci, já se equilibrando, percebeu que, com duas pernas, poderia ser muito mais rápido que todos os sacis da comunidade e aí passou a ser vítima da inveja de alguns, já que ele era o mais solicitado para as tarefas mais difíceis. Essa inveja fortaleceu o preconceito de outros, que, veladamente, se juntaram contra aquele saci. “O impressionante”, dizia Lambada, “é que quanto mais o ódio por ele crescia, mais ele amava sua comunidade; maior era sua dedicação à ela.” 
Continuando, contou que os anos foram mostrando para a comunidade que a diferença daquele saci não era apenas na aparência, mas também, na capacidade de amar. Todos diziam que ele não era apenas mais veloz que os outros, mas também amava mais que todos. Ele dizia que não amava mais, nem menos, mas simplesmente de forma diferente. Por fim, depois de ter adquirido o respeito de todos e de ter se tornado um dos líderes, o saci foi embora sem avisar ninguém, deixando a comunidade saudosa, mas feliz por ter convivido muitos anos com aquele ser tão especial. Acontece que o saci resolveu ir embora de sua comunidade quando descobriu que havia nascido com outro defeito. No seu peito batiam dois corações.
“Dizem que hoje ele anda por todas as florestas e cidades deste país espalhando seu amor e que quando sentimos súbitas alegrias sem motivos aparentes, é ele quem está passando em nossa frente, mas, de tão rápido, nem conseguimos vê-lo.”, finalizou Lambada.
Confesso que foi difícil conter as lágrimas e ficamos todos sem voz, com exceção de Rumba, que por estar em fase final dos estudos, acostumou-se a colocar suas dúvidas. “Será que os homossexuais também têm dois corações, por isso, podem amar mais?”, perguntou. “Não! Eles não amam mais, nem menos, apenas de forma diferente.”, respondeu a Salsa. “E aquele deputado não entendeu isso ainda?”, replicou a cadelinha. “Um dia ele vai entender. Um dia todos vão entender”, profetizou Maracatu. 

João Bid

4 comentários:

  1. João

    AMEI, DE FORMA MUITO NATURAL, COMO DEVERIA SER NATURAL TODA FORMA DE AMOR. MAS COM UM DETALHE:AMEI DEMAIS!!!!!!!!! beijos Lilian

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  2. Genial!! João Bid ganha cada vez mais status de grande e importante blogueiro da nossa região, que é tão carente de reflexão e critica. Uma forma bem brasileira de mostrar como funcionam as coisas por aqui. Raridade.

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  3. Ai, me deu até um nó de choro no final do conto da Lambada. Amo essa saci, queria que ela viesse passar uns tempos comigo, ando precisando de escapes em contos lindos como o saci de duas pernas e dois corações...
    Me emocionei.
    AH! E VIVA RUMBA! Neguinha linda pézuda!

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  4. João, acho dispensável um comentário meu, seja ele falado ou escrito, tentando descrever o quanto gostei do texto.
    Mas gostaria de deixar registrado que apesar de não nos vermos com frequência, aprendo muito como pessoa e escritor apenas lendo seus novos posts em seu blog.

    Um forte abraço,

    Fausto Pará.

    http://doispontossilencio.blogspot.com

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