Chegando à tarde em casa, eu e Lisa, conversávamos no carro sobre a certeza de termos de fazer malabarismos para escapar das investidas das cadelas ao abrirmos o portão. A Rumba, que está no auge de sua infância, é a que nos ataca com mais veemência, em busca de carinho, atenção, enfim, aquelas coisas de criança. Temos até uma musiquinha que cantamos em uníssono nesses momentos. É uma canção que está na trilha sonora do filme “Bagda Café” e se encaixa direitinho nesse evento em que se tornou nosso encontro com as cadelas, depois de um dia inteiro sem vê-las.
Nesse dia, porém, uma surpresa: nenhuma delas no portão. Trocamos um olhar e rimos, porque era uma questão de poucos segundos para estarem todas na grade da frente, pulando e latindo, ansiosas por nos atacarem. Abrimos o portão e nada. A partir daí, nossos olhares passaram a ser de preocupação.
Nem fomos para a porta da sala. Pegamos o corredor da direita e, quando íamos começar a correr para o fundo da casa, ouvimos a voz do Tom: “Sentido!”. Já no fim do corredor, pudemos ver as quatro cadelas alinhadas na grama e o Tom, o gato, usando o quepe do tenente da peça “Era uma vez”, que o grupo de teatro da Lisa está encenando, no centro da passarela de concreto, dando os comandos. “Direita!”, gritou o gato. Nesse instante, a Rumba percebeu nossa presença e olhou para a nossa direção. Estávamos à esquerda. O Tom gritou ainda mais alto: “Eu falei direita.” A Valsa também nos viu e tentou sair da formação. Acabou tomando uma dura. “Soldado Valsa, fique no seu lugar. Ainda não dispensei o ‘pelotom’.”, falou firme o gato.
A Salsa, cega que está, era um caso à parte, pois estava sempre desalinhada, mas o Tom, nesse caso, falava com mais calma. “Salsa, vem um pouco mais pra frente. Vire um pouco pra esquerda pra ficar de frente pra mim.”, dizia o gato, com voz mais baixa e paciente.
Em cima do telhado da casa estavam Maracatu e Lambada, os sacis, que não paravam de rir.
“Você sabe o que é isso, né?”, me perguntou a Lisa, quase que sussurrando. Fiz sinal que sim e continuamos olhando.
Acontece que a Polícia Militar se instalou em frente de casa e, dia desses, a Lisa viu o Tom saindo do Pelotão tranquilamente. Isso nos preocupou um pouco até sabermos que ele é muito bem tratado lá.
“Descansar!”, gritou o gato. “’Pelotom’! Dispensado.”, encerrou o treinamento o comandante. Samba, Valsa e Rumba dispararam em nossa direção, enquanto que o Tom ajudava a Salsa a sair da grama e se orientar para também vir até nós. O Tom se dirigiu ao quartinho para guardar o quepe, de onde deu mais uma ordem: “Meninas! Amanhã, no mesmo horário.” Maracatu e Lambada desceram do telhado e fomos todos pra varanda.
Na varanda, a Rumba, que ainda não fala, começou a latir em diversos volumes e timbres e Lambada, que será sua professora, traduzindo. “Ela quer dizer que achou muito divertida a brincadeira do Tom.”, informou a saci. “Brincadeira! Ele tá levando a sério a formação de um pelotão. Aliás, ele quer que chame de ‘pelotom’, o pelotão do Tom.”, disse a Valsa. “Acho que ele pirou, porque também inventou o ‘Capitom’, capitão Tom. Tá se sentindo um super-herói.”, falou a Samba, rindo. Salsa, mais introspectiva e pensante, opinou pelo lado filosófico e sociológico: “A busca do poder, às vezes, é feita por caminhos que desconhecemos. É preciso identificar o caminho trilhado pelo Tom, para depois combatermos a causa e trazê-lo novamente para a realidade.” Fez-se silêncio, quando entrou na varanda o alvo de nossa conversa.
“Sente aí, Tom. Vamos bater um papo.”, convidou a Lisa. “Não. Vou dormir um pouco agora, pra ficar de guarda quando as meninas dormirem. Não podemos deixar nossa casa desprotegida.”, respondeu o gato, que entrou e, antes de deitar, assobiou a primeira parte de “Il Silenzio”.
“Não se preocupem. O Tom está sofrendo a influência das novas amizades com os soldados da Polícia Militar aí da frente. Logo-logo ele volta a ser o nosso Tom.”, disse Maracatu.
Pra mudar de assunto, perguntei ao casal de sacis o que eles têm visto de arte. Maracatu, meio desanimado, disse que viu algumas coisas interessantes pela região e assistiu a atração de fechamento da Festa de São José, o Padroeiro de Mairinque, só para ver se era verdade o que estavam anunciando, que para ele era um absurdo. Quisemos saber o que era e Lambada contou que eles foram no último dia da festa e estava programada, como atração principal, um festival de Luta Livre. “Acho que vocês não viram direito, porque não é possível terem programado ‘luta livre’ para o último dia de uma festa religiosa.”, falei espantado. “Fico imaginando o padre anunciando: ‘Logo após a missa, teremos um sensacional festival de Luta Livre na praça’”, falou a Valsa,rindo muito. “O pior é que, como choveu, a luta foi transferida para o palco do Teatro Municipal.”, acrescentou Maracatu. “Isso é brincadeira... me recuso a acreditar... no Teatro Municipal?!”, disse a Lisa, quase se afogando com um pedaço de chocolate, mas Lambada foi enfática: “Também não acreditamos, porém, foi o que vimos.” “Vocês contaram isso pro Tom?”, perguntei. “Contaram, com detalhes.”, informou a Samba. “Então, está explicado.”, concluiu a sábia Salsa.
Passados três dias, o Tom passou o dia dormindo e à tarde não incomodou as meninas. Todos perceberam a mudança, mas não quiseram questionar com medo que o gato retomasse o “Pelotom”. À noite, puxei conversa com ele e não resisti. Perguntei o que tinha ocorrido. O Tom me explicou que quando os sacis contaram a história da luta livre na Festa de São José, ele ficou apavorado ao imaginar que na Festa de São João Batista, que seria a próxima, a programação poderia trazer o tal do Vale Tudo e o pior poderia ocorrer na Festa de São Benedito, que é no nosso bairro. “Aí eu pirei e comecei imaginar que poderia acontecer um festival de seres estranhos, desses homofóbicos, ou racistas, ou ainda aqueles que gostam de maltratar animais em rodeios, e pensei em usar os conhecimentos adquiridos com meus amigos da PM pra proteger nossa casa, mas acho que já passou.”, me contou o gato. Perguntei o que aconteceu pra ele mudar de opinião e ele me disse que assim que soube que a Prefeitura foi quem programou a tal Luta Livre, ficou mais tranqüilo, porque sabia que os cristãos ficariam mais atentos e não permitiriam a repetição desse absurdo.
“Digo adeus ao Capitom, então?”, perguntei sinicamente. “Por ora, sim.”, respondeu ele.
João Bid
João, amei!!!!!!! você tem que publicar um livro com todas essas histórias, que coisa mais lúdica e linda. Beijão, Lilian
ResponderExcluirOi tudo bem? Parabens pelo blog, ele é bem original, dizem que todo blog tem traços do autor e é sempre fazer o que gostamos...tudo de bom e sucesso...
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