sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

VALEU GUARNIERI!

(publicado em 24/07/06)
No domingo de manhã, as cadelas, Samba e Salsa, perceberam o clima de tristeza que se instalou na nossa casa e ficaram na lavanderia.
A princípio estranhei não encontrá-las na porta da varanda quando levantei, mas logo entendi que elas sabiam que eu havia perdido algo importante e estavam respeitando minha dor.
Pensei em ir à lavanderia e contar pra elas de uma vez que Gianfrancesco Guarnieri havia morrido no dia anterior, mas voltei pra dentro de casa a fim de coordenar meus pensamentos e depois entrar no assunto, já que nossos animais acabam absorvendo todas nossas alegrias e tristezas. Se eu não soubesse abordar o assunto poderia deixá-las também muito triste.
Mais tarde, resolvi falar de Guarnieri a elas.
Cheguei na lavanderia e não fui recepcionado como sempre. Salsa estava deitada no sofazinho, com as duas patas dianteiras cruzadas, onde apoiava o queixo, e o olhar muito grave. Samba fazia de conta que comia, mas somente pra não olhar diretamente nos meus olhos.
Sentei sobre uma caixa acústica que fica, por falta de organização minha, no centro da lavanderia e fui logo contando que aquele amigo, de pouca convivência, mas importante amigo, havia morrido.
Samba criou coragem e me olhou. “Fale tudo o que você quiser. Estamos aqui pra te ouvir.” Nesse momento chegaram Maracatu e Lambada, que já sabiam do ocorrido. A gente não sabe muito bem como, mas os sacis acabam sabendo de tudo. Há uma ética, que também não entendemos muito bem, que não os deixa sair por aí contando tudo que sabem. Mas, que sempre sabem, sabem. Os sacis entraram na lavanderia e somente acenaram com a cabeça, confirmando que também estavam ali pra escutar.
Contei, o que passo a contar pra todos:
Conheci Guarnieri como dramaturgo em 1982, quando o GRUTA – Grupo de Teatro Amador, do qual eu fazia parte, montou a peça “Eles não usam black tie”, de Guarnieri, e ali já ocorreria a primeira coincidência, pois, na peça, existiam uns versos que o Tião cantava pra Maria, e, como não sabíamos a melodia, pedimos pro Kiko, um grande músico que também já se foi, musicá-los. O Kiko fez uma música que nunca mais esqueci.
Em 1994, Guarnieri convidou o Catavento e Marília Medalha pra cantarmos suas canções no espetáculo “Poeta, mostra a tua cara!” e ali tomamos contato com a música original daqueles versos musicados pelo Kiko em 82. A letra do Guarnieri havia sido musicada por Adoniran Barbosa. Por mais incrível que possa parecer, as harmonias e melodias são muito parecidas. Tanto que as duas melodias podem ser cantadas com a mesma harmonia, quase que integralmente. Comentei isso com Guarnieri e até cantei a melodia do Kiko pra ele.
Em 1997, Guarnieri concordou em participar do nosso CD “Adonirando” e fez uma interpretação inigualável na música “Nóis não usa as blequetais” , fechando o ciclo iniciado naquela melodia feita pelo Kiko. Não sei se alguém consegue entender a emoção que ainda sinto.
Apresentamos o espetáculo “Poeta, mostra a tua cara!” no Sesc Pompéia, em São Paulo; para alunos da PUC, em Campinas; no teatro da Universidade de Niterói; e no Teatro Carlos Gomes, na cidade do Rio de Janeiro. No Rio é que conheci de verdade Gianfrancesco Guarnieri. O dramaturgo, poeta, ator e político, eu já conhecia, mas no Rio é que conheci o ser humano. Foram muitas as lições de vida em todos os aspectos.
À época, Guarnieri tinha uma coluna no jornal “O Estado de São Paulo”, onde escrevia sobre as conversas que mantinha com seus cachorros. Numa delas, ele até relatou uma história que contei pra ele lá no Rio. Vem dali, a idéia de contar as minhas conversas com as cadelas e os sacis.
Depois disso, compus uma canção, em parceria com Lula Barbosa, e dediquei a ele. A canção está gravada no meu CD “O Tempo e a Paciência”.
Meu último contato com Guarnieri foi há uns dois anos, quando ele me ligou pra agradecer pela canção e cumprimentar pelo CD “Dom Casmurro na Canção”, que eu havia lançado naquela época. E essa foi a última demonstração da generosidade daquele amigo maravilhoso para comigo, quando, inclusive, me contou que começava a sofrer com a doença que o levou.
Quando parei de falar, estavam todos muito tristes com minha história e Samba fechou o momento dizendo: “Estes é que são os grandes momentos da vida da gente e devem ser guardados. Os pequenos?! Esqueça, ou faça que nem percebeu que ocorreram.”
João Bid

Um comentário:

  1. Me pergunto o que "Tom" diria sobre tudo isso... afinal em seu exentrismo peculiar diria que gatos tem conversar melhores acompanhados de wiskis e um bom charuto e que afinal de contas porque seus comentarios interessantes não são descritos..rsss... e Valsa responde "deixa de ser metido!"

    ResponderExcluir