quinta-feira, 26 de maio de 2011

SENSO ESTÉTICO É UMA QUESTÃO CULTURAL

Hoje temos nossa varanda de volta, porém, logo que a Rumba chegou e se apaixonou pela espreguiçadeira, liberamos esse espaço nobre da casa para ela e as outras cadelas. Confesso que foi difícil retomá-la, porque, além da Rumba, a Salsa estava feliz com o cantinho que já havia tomado, mas não dava mais pra ficar ouvindo nossas visitas cobrarem a reintegração de posse daquele espaço. 
Nesse breve espaço de tempo, cansamos de acordar e encontrar as cadelas, os sacis e o gato espalhados pela varanda, batendo longos papos. Participamos de muitos desses papos, mas um deles ficou na minha cabeça. Foi num domingo, dia de céu aberto, com as duas janelinhas da varanda voltadas para leste recebendo o sol da manhã e a brisa passeando de sul para norte no espaço. Maracatu e Lambada enrolados na rede; Samba sentada em frente à mesinha, que fica encostada na parede, mas no centro da varanda; Rumba, obviamente, na espreguiçadeira; Salsa embaixo dela; e o Tom em cima da grade que separa a varanda da frente da casa. Realmente uma manhã deliciosa para um bom papo. Eu e Lisa abrimos a janela que dá para a varanda e nos acomodamos ali, após ouvirmos o Maracatu dizer: “Lembra aquela peça teatral do Millôr Fernandes ‘Um elefante no caos’, que se passava num prédio de apartamentos e seus moradores conviviam com um incêndio que nunca acabava. O bombeiro, na peça, já era amigo de todos e estava sempre tomando café no apartamento da Maria, a protagonista da história.” “Vocês estão falando de teatro? Tô dentro.”, disse a Lisa. 
“Não. Eu estava falando da praça do nosso bairro, que está em reforma faz mais de um ano e não dá pra imaginar quando ficará pronta, pela morosidade da obra, quando o Maracatu fez essa analogia.”, contou Lambada, que completou, “Eu e Maracatu passamos todas as madrugadas ali e perece que está sempre do mesmo jeito.” “Que nem o incêndio no prédio da peça do Millôr. Não acabava nunca.”, falou Maracatu, em meio a risos.
“Vocês riem, mas deveriam chorar. Não é legal viver numa cidade que num dia programa luta livre na festa do padroeiro, no outro, realiza um rodeio sem nenhuma tradição local, nem mesmo um peão Mairinque tem, e, agora, com a reforma de uma praça que nunca termina.”, disse o Tom, demonstrando certa mágoa na voz. “A gente, que nasceu aqui, não fica feliz com isso.”, completou o gato. “Sem falar nos outros absurdos que acontecem aqui.”, disse a Valsa, que é sãorroquense de nascimento. “Se é como o Maracatu e a Lambada contam pra gente, a coisa tá feia.”, falou a Salsa.
Samba, que nessa altura da conversa se mostrava indignada, me questionou: “Sem querer duvidar do Maracatu e da Lambada, me responda. É verdade que a porta de entrada do Teatro Municipal de Mairinque fica atrás de uma roda-gigante?” Expliquei que isso ocorre somente durante a festa de São José, quando, por falta de espaço, montam uma roda-gigante, de fato, na porta do teatro. “Que absurdo!”, interrompeu a cadela, que fez mais uma questão. “E a porta de entrada da escola de arte? É verdade que fica atrás de um carrinho de hot-dog?”. Nesse momento, a Lisa não aguentou e deixou escapar uma risada, mas engoliu-a imediatamente após receber olhares de censura, pois todos estavam penalizados com a tristeza da Samba e do Tom. Abaixei a cabeça e fui obrigado a acenar positivamente, porque realmente a porta de entrada da escola de artes fica atrás de um carrinho de hot-dog. Samba fechou a boca, se virou e saiu da varanda, seguindo direto para o quartinho, muito envergonhada e chateada. Tom pulou da grade para cima do telhado e sumiu. Eu, que sou nascido em Mairinque e adoro a cidade, saí da janela e fui para o computador. Do gramado, onde estava iniciando uma brincadeira com a Rumba, Valsa tentou minimizar a situação constrangedora. “Mas, em compensação, os camelôs não estão mais nas calçadas da praça do nosso bairro!”, vibrou a cadela. “Pois é! Agora eles estão instalados bem na entrada da Estação, a primeira construção em concreto armado do país.”. ironizou Maracatu. “Instalaram os camelôs numas barracas metálicas de um mau gosto ímpar. Hoje, a nossa estação está escondida pelas barracas.”, lembrou Lambada. “Pelo amor de deus! Isso tá parecendo ensaio fotográfico de Sebastião Salgado.”, gritou Salsa, encerrando conversa.
À noite, eu e Lisa avaliávamos que a gente anda pela cidade e acaba se acostumando com a paisagem, não notando detalhes que realmente deveriam chocar, como chocaram nossos sacis, nossas cadelas e o gato. Lisa argumentava que tudo é uma questão cultural e exemplificou com a televisão brasileira, citando a TV do Silvio Santos, que tem uma programação de mau gosto a toda prova, porque o bom gosto não faz parte da cultura de seu proprietário. Lamentamos então, o azar do povo mairinquense, que elegeu políticos que não incluíram em suas culturas o senso estético apurado. O Tom, que estava tomando seu último gole de leite antes de dormir, fechou a conversa fazendo uma maldade. “Bem diferente do Maracatu e da Salsa, que numa conversa de alguns minutos citaram Millôr Fernandes e Sebastião Salgado... É! Os políticos poderiam pelo menos dar ouvido aos animais e aos seres de nosso folclore, já que nunca ouvem seu povo.”

João Bid

7 comentários:

  1. Adoro os comentários do Tom, o "gigante pela própria natureza". Abusado!

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  2. Deveriam ouvir os animais e, quem sabe, respeitá-los... Falando em animais, que deliciosa lembrança você me trouxe lembrando Elefante no caos...

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  3. É mesmo, Rê!
    Você era a Maria e o Marcoré o Bombeiro. Nunca me esqueço daquela cena em que o bombeiro foi tomar café e não conseguiu falar, porque o bolinho ficou enroscado na garganta.
    Impagável a cena.

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  4. Infelizmente, meu caro, essa falta de senso estético/descaso com o patrimônio histórico e cultural não é um "privilégio" de Mairinque...
    Muito triste!!!

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  5. João

    Eu quero conhecer Mairinque qualquer dia destes! E quero que as cadelas, o gato e sacis me apresentem.
    Quando é o lançamento deste livro homem de Deus?
    Mairinque deveria patrocinar este livro, isso sim.
    Você encontrou um filão e tanto João, e é muito gostoso de ler e imaginar tudo que você escreve.
    Quero mais. beijos, Lilian

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  6. Oi Lílian,
    Neste momento estou escrevendo com o Tom no meu colo e ele pediu pra você vir a hora que quiser que ele mostra a madrugada mairinquense pra você.
    Ele também agradece o carinho com que você aprecia nossos textos.
    Beijos

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  7. João, agradeça ao Tom, diga que mando lambidas com sabor de atum para ele.

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