Fiquei um tempo sem relatar as conversas de casa, porque as conversas rarearam mesmo, já que algumas coisas chatas aconteceram com a gente.
Perdemos o amigo, o irmão, o parceiro musical, enfim, a pessoa maravilhosa, que era o Abelardo, o Abê, que além de cantar no Catavento comigo, é um grande artista plástico. Aliás, o Abê cantava e tocava seus instrumentos com o mesmo cuidado que pintava; assim como, pintava seus quadros com a mesma intensidade com que interpretava uma canção. Já havíamos perdido José Saramago, escritor que inspira nosso cotidiano. E, na sequência, a Salsa, a cadela mais gorda e peluda, a mais tímida e séria, está com diabetes e, por conseqüência da doença, ficou cega.
Por tudo isso, os dias ficaram mais silenciosos nesses últimos meses. Todos respeitando a forma e o tamanho com que a dor se apresentou em cada um de nós.
Um fato novo trouxe um pouco de alegria para a casa e a chance das conversas voltarem a fluir. Não tenho dúvidas que Abê e Saramago também se alegraram com esse fato. Dilma ganhou as eleições e logo no dia seguinte as coisas já estavam diferentes.
“Cala a boca, Tom!!!”, ouvi, quando estava no corredor interno da casa, me dirigindo à cozinha. A fala vinha do corredor externo. Abri a janela que dá para a garagem e vi a Samba rindo de pernas pro ar e aproveitando para coçar às costas, com movimentos que, se juntando ao riso, criavam uma espécie de performance pós moderna. Realmente bacana.
Perguntei o que estava ocorrendo e a Samba, entre risos, disse-me que a Salsa estava fazendo ameaças ao Tom, o gato, invocando até a vitória da Dilma para isso.
Abro um parêntese para falar um pouco sobre a situação da Salsa. Somente agora ela está mais habituada com o espaço que deve explorar sem a visão, mas, no começo, ela andava batendo a cabeça, indo para o lado errado, o que nos deixava chateados. Com o tempo, a Salsa mesmo foi nos deixando mais à vontade, se permitindo, até, brincar com a situação. “No começo a gente acha que o mundo acabou, mas, depois, a adaptação é natural e você acaba descobrindo coisas tão belas quanto aquelas que você pode enxergar. Aliás, que você pode ver; porque você somente consegue chegar o mais próximo de enxergar de verdade, quando já não pode mais ver.”, filosofou a Salsa, um belo dia. Digo um belo dia, porque, a partir dali, ficamos mais à vontade para conversar com ela, sem achar que a cadela ficou sem algo, mas sim, pensando que ela ganhou algo, que nós não conseguimos imaginar. Algo que pode, até, ser melhor. “Hoje, tenho mais tempo pra ficar comigo,” concluiu a cadela.
Então, voltando ao dia seguinte da vitória da Dilma, a Salsa entrava no corredor para se dirigir ao quartinho do fundo do quintal e o Tom, da janela da cozinha, dirigindo seus passos, mas, obviamente, apontando para direções erradas, criando armadilhas para os passos da Salsa. “Vem pra esquerda!”, orientou o Tom, e a Salsa derrubou a vassoura, que estava encostada na porta da cozinha. “Mais pra direita!”, ajudou o gato, e a pata da cadela mergulhou na vasilha de água; “Segue em frente”, incentivou o Tom, e a cabeça da Salsa parou no botijão de gás.
Foi aí, que a Salsa gritou: “Cala a boca, Tom!!!, Cuide da sua vida! Aliás, cuide bem da sua vida, porque, agora, quem manda aqui são as mulheres. Você vai experimentar o toque feminino, seu gato safado. E cuidado ao passar perto de mim, pois meu faro está mais aguçado e posso te dar um bote muito mais certeiro agora.” “É Dilma lá e nós aqui”, alfinetou a cadelinha Valsa.
“As mulheres vão dar um toque feminino e folclórico no governo, já que a vitória da Dilma se deu no dia em que o Brasil comemora o Dia do Saci.”, lembrou a saci Lambada, com quem, concordou o saci Maracatu. “É! Isso é motivo de muito orgulho para nós.”
Como estávamos no meio do feriado, reservei aquela tarde para cortar a grama do quintal.
Estava eu arrancando tiriricas, com Samba e Valsa à minha volta e Salsa um pouco mais distante, quando vejo que o Tom se aproximava. Embora a convivência entre cães e gato tenha melhorado lá em casa, ainda me preocupo quando eu e a Lisa estamos próximos dos animais. Ainda tenho medo que o ciúme faça com que as cadelas ataquem o Tom. Mas... o Tom se aproximava e estava para passar na frente da Salsa. Lembrei que a Salsa havia prometido um bote certeiro e fiquei preocupado. Agora, o Tom estava com a metade do corpo em frente à Salsa e notei que ela farejava pra determinar a distância. O rabo dele iria encostar no nariz dela e o rabo dela começava a balançar. Fixei os olhos naquela direção, pronto para evitar o pior, quando o rabo do Tom tocou, de fato, o nariz da Salsa. Quis fechar os olhos, mas resisti e não o fiz. Nesse momento, a Salsa respirou fundo, abriu um sorriso, coisa rara naquela cadela, e, não tenho dúvida, se sentiu um degrau acima na sua evolução enquanto ser, quase humano.
Ali, percebi que o governo Dilma Roussef começava a se desenhar. Os preconceitos estão sendo vencidos e os seres terão mais chances de se entenderem melhor.
Arrepiei, porque, concomitantemente ao ocorrido, dois raios de sol se espremeram entre as nuvens carregadas e, por um breve instante, iluminaram o quintal.
O sol se foi em seguida, deixando uma brisa e a certeza de que Abê e Saramago estavam passando por ali e também curtiram aquele momento de grandeza da Salsa. Vencer os preconceitos sempre foi um dos ideais dos dois.
João Bid
ameiiii estava com sdds de ler essas histórias!!!!
ResponderExcluirParabéns pela sensibilidade meu amigo.
ResponderExcluirO mundo sempre foi delas!
Bid, temos muito em comum, Dilma, Cachorros, Gatos e o Dervile, só não fui "escolhido" para ter sacis.
ResponderExcluirSua pena é tão bôa quanto suas partituras.
obrigado pela poesia em tudo.
muito bom JOÃO!sua sensibilidade não tem limites!!a proposito,chorei ao assistir o PAUL!!!!
ResponderExcluirAcredito que estamos entrando numa nova era, politicamente, não diferente da passada. Mas, o mais importante de tudo, é que a escolha democrática venceu o preconceito. Eu confesso, que por algum período achei que o medo fosse decidir estas eleições. Mas, felizmente, estava enganado. Espero que esta coragem aumente, a cada ano, e num futuro, quem sabe, talvez poderemos experimentar uma alternativa diferente, um sistema de governo diferente. Um Sol.
ResponderExcluirabraços.
Legal João Bid que temos mais isso em comum: o amor pelas cadelas. Sim, porque macho em casa, basta um! Aqui temos a Buffy com 10 anos. Bem, fico emocionado sempre que penso no Abê, mais que um irmão, um companheiro. Estou numa missão dificílima de explicar para a Duda que agora ele se foi - virou estrela no céu! Ele que tinha tanto carinho pela minha filha. Estamos todos um pouco "órfãos". Parabéns pelo blog. Abraço, Elson.
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