quinta-feira, 11 de novembro de 2010

VENCENDO PRECONCEITOS

Fiquei um tempo sem relatar as conversas de casa, porque as conversas rarearam mesmo, já que algumas coisas chatas aconteceram com a gente.
Perdemos o amigo, o irmão, o parceiro musical, enfim, a pessoa maravilhosa, que era o Abelardo, o Abê, que além de cantar no Catavento comigo, é um grande artista plástico. Aliás, o Abê cantava e tocava seus instrumentos com o mesmo cuidado que pintava; assim como, pintava seus quadros com a mesma intensidade com que interpretava uma canção. Já havíamos perdido José Saramago, escritor que inspira nosso cotidiano. E, na sequência, a Salsa, a cadela mais gorda e peluda, a mais tímida e séria, está com diabetes e, por conseqüência da doença, ficou cega.
Por tudo isso, os dias ficaram mais silenciosos nesses últimos meses. Todos respeitando a forma e o tamanho com que a dor se apresentou em cada um de nós.
Um fato novo trouxe um pouco de alegria para a casa e a chance das conversas voltarem a fluir. Não tenho dúvidas que Abê e Saramago também se alegraram com esse fato. Dilma ganhou as eleições e logo no dia seguinte as coisas já estavam diferentes.  
“Cala a boca, Tom!!!”, ouvi, quando estava no corredor interno da casa, me dirigindo à cozinha. A fala vinha do corredor externo. Abri a janela que dá para a garagem e vi a Samba rindo de pernas pro ar e aproveitando para coçar às costas, com movimentos que, se juntando ao riso, criavam uma espécie de performance pós moderna. Realmente bacana.
Perguntei o que estava ocorrendo e a Samba, entre risos, disse-me que a Salsa estava fazendo ameaças ao Tom, o gato, invocando até a vitória da Dilma para isso.
Abro um parêntese para falar um pouco sobre a situação da Salsa. Somente agora ela está mais habituada com o espaço que deve explorar sem a visão, mas, no começo, ela andava batendo a cabeça, indo para o lado errado, o que nos deixava chateados. Com o tempo, a Salsa mesmo foi nos deixando mais à vontade, se permitindo, até, brincar com a situação. “No começo a gente acha que o mundo acabou, mas, depois, a adaptação é natural e você acaba descobrindo coisas tão belas quanto aquelas que você pode enxergar. Aliás, que você pode ver; porque você somente consegue chegar o mais próximo de enxergar de verdade, quando já não pode mais ver.”, filosofou a Salsa, um belo dia. Digo um belo dia, porque, a partir dali, ficamos mais à vontade para conversar com ela, sem achar que a cadela ficou sem algo, mas sim, pensando que ela ganhou algo, que nós não conseguimos imaginar. Algo que pode, até, ser melhor. “Hoje, tenho mais tempo pra ficar comigo,” concluiu a cadela.
Então, voltando ao dia seguinte da vitória da Dilma, a Salsa entrava no corredor para se dirigir ao quartinho do fundo do quintal e o Tom, da janela da cozinha, dirigindo seus passos, mas, obviamente, apontando para direções erradas, criando armadilhas para os passos da Salsa. “Vem pra esquerda!”, orientou o Tom, e a Salsa derrubou a vassoura, que estava encostada na porta da cozinha. “Mais pra direita!”, ajudou o gato, e a pata da cadela mergulhou na vasilha de água; “Segue em frente”, incentivou o Tom, e a cabeça da Salsa parou no botijão de gás.
Foi aí, que a Salsa gritou: “Cala a boca, Tom!!!, Cuide da sua vida! Aliás, cuide bem da sua vida, porque, agora, quem manda aqui são as mulheres. Você vai experimentar o toque feminino, seu gato safado. E cuidado ao passar perto de mim, pois meu faro está mais aguçado e posso te dar um bote muito mais certeiro agora.” “É Dilma lá e nós aqui”, alfinetou a cadelinha Valsa.
“As mulheres vão dar um toque feminino e folclórico no governo, já que a vitória da Dilma se deu no dia em que o Brasil comemora o Dia do Saci.”, lembrou a saci Lambada, com quem, concordou o saci Maracatu. “É! Isso é motivo de muito orgulho para nós.”
Como estávamos no meio do feriado, reservei aquela tarde para cortar a grama do quintal.
Estava eu arrancando tiriricas, com Samba e Valsa à minha volta e Salsa um pouco mais distante, quando vejo que o Tom se aproximava. Embora a convivência entre cães e gato tenha melhorado lá em casa, ainda me preocupo quando eu e a Lisa estamos próximos dos animais. Ainda tenho medo que o ciúme faça com que as cadelas ataquem o Tom. Mas... o Tom se aproximava e estava para passar na frente da Salsa. Lembrei que a Salsa havia prometido um bote certeiro e fiquei preocupado. Agora, o Tom estava com a metade do corpo em frente à Salsa e notei que ela farejava pra determinar a distância. O rabo dele iria encostar no nariz dela e o rabo dela começava a balançar. Fixei os olhos naquela direção, pronto para evitar o pior, quando o rabo do Tom tocou, de fato, o nariz da Salsa. Quis fechar os olhos, mas resisti e não o fiz. Nesse momento, a Salsa respirou fundo, abriu um sorriso, coisa rara naquela cadela, e, não tenho dúvida, se sentiu um degrau acima na sua evolução enquanto ser, quase humano.
Ali, percebi que o governo Dilma Roussef começava a se desenhar. Os preconceitos estão sendo vencidos e os seres terão mais chances de se entenderem melhor.
Arrepiei, porque, concomitantemente ao ocorrido, dois raios de sol se espremeram entre as nuvens carregadas e, por um breve instante, iluminaram o quintal.
O sol se foi em seguida, deixando uma brisa e a certeza de que Abê e Saramago estavam passando por ali e também curtiram aquele momento de grandeza da Salsa. Vencer os preconceitos sempre foi um dos ideais dos dois.   
     
      João Bid

6 comentários:

  1. ameiiii estava com sdds de ler essas histórias!!!!

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  2. Parabéns pela sensibilidade meu amigo.
    O mundo sempre foi delas!

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  3. Bid, temos muito em comum, Dilma, Cachorros, Gatos e o Dervile, só não fui "escolhido" para ter sacis.
    Sua pena é tão bôa quanto suas partituras.
    obrigado pela poesia em tudo.

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  4. muito bom JOÃO!sua sensibilidade não tem limites!!a proposito,chorei ao assistir o PAUL!!!!

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  5. Acredito que estamos entrando numa nova era, politicamente, não diferente da passada. Mas, o mais importante de tudo, é que a escolha democrática venceu o preconceito. Eu confesso, que por algum período achei que o medo fosse decidir estas eleições. Mas, felizmente, estava enganado. Espero que esta coragem aumente, a cada ano, e num futuro, quem sabe, talvez poderemos experimentar uma alternativa diferente, um sistema de governo diferente. Um Sol.

    abraços.

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  6. Legal João Bid que temos mais isso em comum: o amor pelas cadelas. Sim, porque macho em casa, basta um! Aqui temos a Buffy com 10 anos. Bem, fico emocionado sempre que penso no Abê, mais que um irmão, um companheiro. Estou numa missão dificílima de explicar para a Duda que agora ele se foi - virou estrela no céu! Ele que tinha tanto carinho pela minha filha. Estamos todos um pouco "órfãos". Parabéns pelo blog. Abraço, Elson.

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