sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A PROFECIA DE TOM JOBIM

E as tragédias de janeiro se repetem. Desta vez, numa intensidade assustadora. A região serrana do Estado do Rio de Janeiro tomou conta do noticiário e todos já imaginavam que, desta vez, o Rio Tietê e a Vila Romano seriam esquecidos pela mídia, poupando os governantes de nosso Estado. Mas São Paulo não deixou barato e, no dia 23, expôs todo esse festival de incompetência e descaso que já conhecemos.
Continuava chovendo e eu e Lisa concluíamos essa conversa, quando Tom, o gato, parou de correr atrás de sua bolinha para lamentar o fato. “Lamentável saber que as mortes poderiam ser evitadas.”, falou o gato, que assistia a bolinha deslizar e parar somente após quase derrubar uma galinha de louça, que mantemos no chão, embaixo do barzinho, “como essa galinha de louça, que por sorte não quebrou.”, concluiu. “Cada vez que você começa a correr atrás de suas bolinhas, nós devemos retirar os objetos quebráveis do chão, não é?”, perguntou a Lisa. “Simples assim. Se a população fosse retirada do local após o sinal de alerta, as mortes seriam evitadas. Além disso, se as autoridades planejassem, fiscalizassem e não permitissem as construções em lugares irregulares, a tragédia seria menor, sem dúvida.”, sentenciou o gato.
Nesse momento chegam Maracatu e Lambada e se acomodam na janela da varanda voltados para o lado de dentro para participar da conversa.
Como as cadelas morrem de medo de chuva, perguntamos ao casal de sacis se as meninas estavam no quartinho. Lambada disse que sim e relatou que a Samba, a mais medrosa, estava no canto, embaixo de uma das prateleiras, e a Valsa, a mais nova, também se encolhera embaixo da namoradeira. “Só a Salsa se mantém calma, reagindo aos sustos que toma com os trovões, mas calma.”, informou Maracatu. Voltamos a falar dos problemas ocasionados pela chuva e a Lisa se lembrou da ironia da natureza ao destruir o sítio de Tom Jobim, compositor de “Águas de Março”. “Meu xará poderia ser chamado de profeta.”, disse nosso Tom, o gato, que cantou, afinadíssimo, uns trechos da música: “É pau, é pedra, é o fim do caminho... É a noite, é a morte... É o tombo da ribanceira... É o vento ventando, é o fim da ladeira... É a chuva chovendo, é conversa ribeira... É o projeto da casa... é a lama, é a lama... É um resto de mato, na luz da manhã... São as águas de março fechando o verão. É a promessa de vida no teu coração...”. Lambada aplaudiu e reforçou: “Vimos tudo isso lá: o tombo da ribanceira, a morte, a chuva chovendo, a lama, a lama e a lama.” “Tom Jobim era um ser humano especial. Entendia e respeitava a natureza; tinha uma relação estreita com as histórias e lendas da floresta; conhecia o folclore nacional. Coisas tão simples, mas que o tornaram imenso e imprescindível.”, discursou Maracatu.
Tentei comentar a manifestação de Maracatu, mas minha voz estava embargada. A Lisa, que ultimamente chora até em leitura de teses de teatro, já estava com os olhos tomados de lágrimas. Tom, nosso gato, percebeu o clima e sugeriu: “Vamos ouvir meu xará, pois agora nada podemos fazer, se não, esperar que toda essa tragédia traga um pouco de consciência para quem se propõe a governar as cidades, os estados e o país.” Saiu correndo, foi até a estante e trouxe, empurrando no chão, como faz com suas bolinhas, o disco “Passarim”. “Coloca a música ‘Brasil Nativo’. O xará faz um passeio pelas coisas do país que ele tanto amava. Acho que essa música pode contribuir com a consciência das pessoas”.
Peguei o disco e coloquei a música que ele pediu. A chuva havia parado e as cadelas chegaram na porta da varanda. Ficamos todos ouvindo e sentindo a grandiosidade deste país. Tom Jobim só não cita minhas cadelas, meu gato e meus sacis, mas cita Guará, Sussuarana e Boitatá: caninos, felinos e seres folclóricos bem brasileiros.
Finalizada a música, Salsa, a cadela que ficou cega, me disse: “Você devia pedir que os leitores do seu blog também ouvissem essa música. A gente enxerga o país inteiro”.
Fica aí a sugestão da Salsa.

João Bid

4 comentários:

  1. Muito bom meu bom João.
    Estás mesmo afiado,certeiro, na prosa, no tom e no canto.
    Obrigado!

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  2. Muito bom!
    E enquanto os descasos continuam, quer por falta de planejamento, quer por necessidade de educação da população, quer por ausência de cidadania, quer por inexistência de vontade política... Enquanto você faz seus desafios na escrita e sua crítica quase como uma fábula, vou expondo meu repúdio ou minha súplica em versos ou em orações.
    http://olhosnasestrelasilviamello.blogspot.com/2011/01/tempo-entre-o-cronologico-e-o.html

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  3. É a lama..é a lama!!!
    Muito bem escrito João....pausa para reflexão, sempre é bem vinda...

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