“A vida é um grande bate papo, que começa no ventre da mãe e não tem fim.”, disse Maracatu, que chegava acompanhado de Lambada à varanda, onde estávamos eu, Lisa e Tom Ravazoli (Não confundir com Tom Diego Ravioli, nosso gato. Tom Ravazoli é o ator que inspirou o nome do nosso gato) conversando após a primeira apresentação do “Causos e Poesias” para os professores da rede municipal de São Roque, na quinta-feira, dia 15.
“Causos e Poesias” é o espetáculo criado para divulgar o livro “Ida e Volta”, de Roberto Godinho, escritor são-roquense. No espetáculo apresentamos as histórias e as poesias contidas no livro através da interpretação dos atores Tom Ravazoli e Rodholfo Heinz e da atriz Daniela Campos; canções interpretadas por mim e Edson D’aísa; e relatos feitos pelo próprio autor. O espetáculo tem ainda, o roteiro de Isabel Pezzota e direção artística da Lisa Camargo.
Conversávamos sobre o prazer de participar daquele momento, que fala sobre as raízes culturais de Roberto Godinho, nascido em Canguera, um bairro da São Roque, e que tem em seu currículo uma graduação em química na USP, um mestrado em Washington e uma capacidade enorme de emocionar ao escrever e falar sobre sua Canguera. Hoje, Godinho e Inês, sua mulher, estão agregados a esse grande bate papo, que, segundo Maracatu, é a minha vida.
As cadelas e o gato dormiam, por isso, não participavam da conversa.
Tom Ravazoli, que já atingiu a sensibilidade necessária para dialogar com os sacis, perguntou o porquê daquela intervenção. “Eu e Lambada estivemos no espetáculo de vocês e lá comentei com ela que aquilo é vida. A troca é vida. A busca é vida. Tudo isso faz parte desse grande bate papo, que nunca termina.”, disse o saci. “Como não termina? Você se esqueceu da morte?”, interferi. “O bate papo continua através das coisas que você deixar. Suas idéias, seus projetos, sua arte vão continuar dialogando com as pessoas.”, falou Lambada, a saci, com extrema segurança.
Calamo-nos por um tempo, pois aquilo era profundo. Simples, óbvio, mas profundo. “Eu nunca tinha pensado nisso, mas vocês têm absoluta razão. Eu mesmo converso todos os dias com Brecht.”, revelou entusiasmado o Tom. A Lisa, que é uma voraz leitora, sorriu e disse que nem iria relacionar seus bate papos, pois sua lista seria imensa, mas não resistiu e exaltou Saramago e Augusto Boal, com quem, aliás, foi fotografada e cuja foto está exposta no corredor de nossa casa. Revelei que meus papos são diários com Kiko, Chico e Abê, pelas coisas que me deixaram na música. E contei que meu pai lutava contra o câncer e percebeu que perderia, por isso, pouco antes de morrer, me pediu que o levasse aos dois clubes da cidade. Não entendi, mas o levei. Nas secretarias dos clubes ele perguntou se estava em dia com as mensalidades. Num deles, faltava pagar o mês corrente, no outro, a mensalidade estava em dia. Ele deixou tudo em dia e entregou uma carta de demissão do quadro de associados em cada clube. Esse ato martela na minha cabeça diariamente.
“Pois é! O Godinho conversa com os trens de passageiros, que já não existem mais no Brasil, porque estes tiveram uma presença muito forte em sua vida. Foi o trem que o levou a Mairinque pra se formar no primário; depois, o levou a São Roque, para completar o segundo grau; e finalmente, o levou para São Paulo, para se graduar na USP.”, relatou Maracatu. “E quando ele falou do cheiro da mata orvalhada; o ar de Canguera com perfume da uva no fim da colheita; do gosto do doce de mandioca em calda que sua avó fazia? Não era um diálogo com o passado, porque tudo aquilo estava muito presente em sua mente. Isso é vida.”, afirmou Lambada.
“Meu deus! Vamos abrir uma cerveja, Tom?”, perguntei. “Eu não bebo, João.”, respondeu o Tom, que não demorou a refazer sua posição. “Abra uma. Acho que agora vai ser bom.” “Eu tomo um copo também.”, disse a Lisa.
Abri a cerveja e saudamos aquele momento. Maracatu e Lambada foram para o quartinho acordar as meninas e Tom, o gato, acordou com o bater dos copos; bocejou, cumprimentou o padrinho e contou que havia sonhado que estava no sossego da mata, esticado sobre as folhas secas, quando veio uma raposa e roubou o cacho de uva que ele estava comendo. “Aí, acordei apavorado, mas vi que me encontrava na segurança do meu lar.”, falou, sorrindo, o gato, que continuou. “Mas a vida não é essa segurança toda. Há momentos...”. “Ah, Tom, pode parar. Não vai filosofar sobre a vida também, vai?”, perguntou a Lisa. “Não. Eu ia dizer que há momentos de insegurança, como o que estou vivendo agora.”, revelou. “O que está acontecendo, Tom?”, perguntei apavorado. “A ração está acabando e não vi vocês falarem em comprar mais. Isso me deixa inseguro.”, respondeu o gato, olhando firme pra mim e pra a Lisa. A Lisa não agüentou e atirou o chinelo em sua direção. Ele desviou e saiu correndo. E rindo muito.
João Bid